barbárie, calor, capitalismo, crime

Da série citações: cientistas perante o inconcebível

glaciers

“Há mais de trinta anos, os cientistas do clima têm vivido uma existência surreal. Um volume de estudos vasto e em constante expansão aponta que o aquecimento global tem seguido a evolução da presença de gases de efeito estufa exatamente como seus modelos previam. Os indícios físicos se tornam a cada ano mais dramáticos: o recuo de florestas, os animais que migram para o norte, as geleiras que derretem, as temporadas de incêndios florestais que se estendem, maiores taxas de secas, inundações e tempestades – cinco vezes a mais nos anos 2000 do que nos anos 1970. (…) A mudança climática induzida pelo ser humano é real – as temperaturas nos EUA subiram entre 1,3 e 1,9 graus [Farenheit, suponho], principalmente desde 1970 – e a mudança já afeta a agricultura, a água, a saúde humana, a energia, o transporte, florestas e ecossistemas. Mas isso não é o pior. As temperaturas do ar no Ártico estão subindo duas vezes mais rápido do que no resto do mundo – um estudo da marinha dos EUA diz que o Ártico pode perder por inteiro sua cobertura de gelo do verão no ano que vem, 84 anos antes do que previam os modelos – e os indícios de pouco mais de um ano atrás sugerem que a cobertura de gelo do Oeste da Antártica está condenada, o que vai acrescentar entre 20 e 25 pés ao nível do mar. Os 100 milhões de pessoas que vivem em Bangladesh precisarão de outro lugar para viver e cidades costeiras em todo o mundo serão forçadas a se deslocar, uma tarefa dificultada pela crise econômica e a fome que virão – com o interior dos continentes secando, (…) um bilhão de pessoas vão se ver passando fome dentro de 20 ou 30 anos. Ainda assim, apesar de alguns desenvolvimentos na área de energia renovável e algumas conquistas da liderança internacional, as emissões de carbono continuam aumentando regularmente, e os próprios cientistas (…) foram alvo de ataques incansáveis e bem organizados que incluíram ameaças de morte, convocações por um Congresso hostil, tentativas de conseguir suas demissões, assédio legal (…), tudo amplificado por uma propaganda incansável financiada descaradamente pelas empresas de combustíveis fósseis. Pouco antes de uma reunião de cúpula decisiva em Copenhagen em 2009, milhares de seus e-mails foram hackeados em uma operação de espionagem sofisticada que nunca foi esclarecida – embora as investigações oficiais da polícia não tenham revelado nada, uma análise de especialistas técnico-legais revelou o caminho dos ataques a partir de servidores na Turquia e em dois dois maiores produtores de petróleo do mundo, a Arábia Saudita e a Rússia.”

A citação aí acima foi retirada de uma matéria da Esquire (sugiro fortemente a leitura). Quem recomendou foi a Camila Pavanelli, que até há pouco publicava o indispensável Boletim da Falta d’Água. (Obrigado, Camila.) A extensa reportagem trata de cientistas que, vendo em primeira mão os dados sobre o desastre ambiental, ou seja, o colapso do planeta na medida em que é capaz de suportar a existência dos humanos, entram em desespero. Alguns buscam alternativas para a vida depois do colapso final, outros simplesmente abandonam o trabalho, outros entram em depressão profunda. Uma das cientistas, inclusive, começa a estudar psicologia para tentar entender como é possível que a humanidade ainda não tenha se dado conta de que é preciso mudar radicalmente de vida – caso contrário estaremos todos perdidos.

Foi esta última personagem que fez Camila lembrar-se de um texto que escrevi em janeiro, e que também trata desse estado de negação, esse verdadeiro bloqueio psíquico, que nos faz continuar vivendo como se… bom, como se houvesse amanhã, para colocar de um jeito meio musical. Escrevi em janeiro, quando São Paulo estava estorricando, faltava água, e o pessoal continuava preocupado com o PIB ou com o fim-de-semana em Bertioga. Pois bem, agora é agosto; as pessoas estão preocupadas com o PIB, o campeonato brasileiro, o impeachment e o fim-de-semana em Bertioga. E São Paulo está estorricando.

Tudo isso porque, repito: o colapso é algo que conseguimos dizer, mas não exatamente pensar. É O Inconcebível.

Bem; talvez esteja na hora de conceber.

Padrão
comunicação, descoberta, economia, escândalo, estados unidos, Filosofia, frança, francês, história, imprensa, inglaterra, inglês, ironia, jornalismo, línguas, literatura, modernidade, obrigações, opinião, passado, Politica, reflexão, sarkozy, trabalho, vida

Como é fácil executar tarefas…

(Coloquei este vídeo porque não sabia como encabeçar este texto e porque achei incrível o quanto ele confronta o antigo e o novo. Sarkozy ainda está na era Bush e não entendeu nada sobre o futuro. Obama dá-lhe uma chinelada. Mais comparações entre os dois, pensando bem, são cabíveis e valem mesmo um texto só para si…)

Meu lado futurólogo começou a formigar, alguns dias atrás, quando vi duas notícias desconexas, em veículos que pouco ou nada têm a ver um com o outro, mas que, colocadas lado a lado, dão um diagnóstico claríssimo do impasse que rege este nosso instante curtinho da história. Acontece que tentei ser prudente. Tentei abafar meu instinto visionário. Fechei as janelas do navegador com as notícias tão logo as vi, segurando como pude a vontade de lançar minha aposta sobre o seguimento do século XXI. Com isso, agora que desisti, não encontro mais nenhuma das matérias, e só sei que uma era da BBC e a outra de uma revista eletrônica americana: Slate, Salon, algo assim (ou o CSM? Sei lá). Se as referências que darei ajudarem alguém a lembrar onde estão essas minhas fontes, peço que me avise, para que eu possa colocar aqui um raiperlinque. Senão, que baste a descrição do conteúdo.

A primeira matéria comentava a facilidade que os estudantes têm de encontrar respostas para o que procuram, contanto que tenham a enorme habilidade de digitar um punhado de palavras no Google ou, bem raramente, em algum outro buscador. Com isso, lamentava-se o jornalista, nenhum aluno precisa mais se esforçar para fazer um trabalho na escola. Basta-lhe procurar na internet a resposta para o que quer o mestre, imprimir e entregar. Não é caso de plágio; mas, por exemplo, se um professor de Física pede aos alunos para descobrir o que dizem as leis de Newton, no dia seguinte a turma inteira volta com as mesmas frases tiradas da Wikipédia.

O outro texto era ainda mais sombrio. Reclamava que o nível cultural da juventude britânica está desesperadoramente baixo. Explicação dada pelos pedagogos que o jornalista consultou: as escolas do país (e do mundo inteiro, porque certamente o Reino Unido é um dos últimos bastiões do ensino generalista) concentram-se demais no ensino da matemática e da gramática, deixando de lado as noções de história, geografia, artes e literatura, que, como sabemos, são as que fornecem ao indivíduo o potencial de reajustar sua própria forma de pensar à medida em que as circunstâncias assim lho exigirem. À parte os dramas educacionais do Brasil, muito semelhantes, guardada a proporção de escala, não é difícil perceber que a necessidade de oferecer uma educação de massa com orçamentos cada vez mais apertados, tudo isso no fito único de formar mão-de-obra, está produzindo uma gigantesca juventude de semi-autômatos de pensamento estreito e lerdo. Basta conversar com alguém de menos de 21 anos para perceber.

Pois bem, ambos os textos exprimem uma crise na educação (aliás, boa hora para reler Hannah Arendt). Um é americano, o outro inglês. Discutem problemas tópicos. Mas ouso dizer que se completam, porque descrevem duas fontes de um mesmo ruído no sistema. Por sistema, quero dizer o campo em que se deslindam as vidas, com seus projetos estruturais, suas convicções morais, políticas e econômicas, suas práticas quotidianas, enfim, a grande engrenagem que mantém o todo em funcionamento. É nisso que há uma grande rachadura. É preciso, pois, identificá-la e fazer face a ela.

Em outras palavras, o impasse que os textos sugerem, um pouco sem querer, vai muito além da educação. A forma como ensinamos e treinamos nossas crianças reflete o que esperamos delas quando se tornarem adultas. Reflete também, portanto, e serve de indicador para o que queremos dos nossos adultos de hoje, como eles devem ser e, de fato, como fazemos com que se tornem, à força de formações, processos de contratação, matérias na imprensa, conversas de bar… Resumindo, tudo no nosso dia-a-dia. É uma estrutura que se forma por conta própria, aos poucos e nunca exaustivamente, de acordo com os problemas de cada época e as necessidades que esses problemas impõem; o caso, porém, é que esses problemas e necessidades se deslocam mais rápido do que nossa capacidade de nos adaptarmos a eles. Eis a origem dos impasses.

Mas como é, afinal, que formamos nossos adultos? Essa informação crucial é que pode ser entrevista nos dois textos que citei acima. Que os estudantes encontrem respostas para as perguntas em pesquisas rápidas na internet demonstra apenas um truísmo: que os professores lhes fazem perguntas cujas soluções podem ser achadas prontas em algum canto. Paralelamente, a concentração exagerada do ensino nos rudimentos matemáticos e gramáticos só corrobora essa visão: o estudante precisa aprender a resolver problemas específicos e concretos, de cálculo puro, que aparecerão à sua frente na vida adulta, em casa e no trabalho, e precisa aprender a expressar corretamente a resposta a perguntas pontuais que lhe serão feitas em reuniões, tribunais, entrevistas de emprego e toda sorte de pequena situação.

Espera-se do adulto de hoje, portanto (e treinam-se os jovens para cumprir essa expectativa), que seja capaz de executar tarefas. Como resquício da sociedade “estritamente” industrial do século passado, formou-se uma estrutura de massa no ensino e no mercado de trabalho, de tal maneira que o profissional, mesmo em campos de atividade, em tese, profundamente intelectuais, como a edição, o jornalismo, as finanças (sim, há algo nelas de muito intelectual, além da técnica pura e simples que se adotou) e a gestão pública, pouco mais é além de um executor de tarefas, um Chaplin de Tempos Modernos mesmo quando se considera um grande administrador e líder.

Pode parecer muito estranha uma afirmação tão categórica quando, nos prospectos de recrutamento de trainees de qualquer grande corporação, consta que são procuradas pessoas que tragam novas idéias, pensem diferente, tenham espírito de equipe e assim por diante. Acontece que essas palavras são desprovidas de qualquer significado concreto, quando vêm de grandes e caros manuais (adoro a expressão anglófona, textbook) de administração, que ensinam, como se fosse uma equação ou uma dedução silogística, que são esses os valores fundamentais dentro de uma empresa saudável. Cabe sublinhar que isso não é uma inverdade… é só uma verdade bem abstrata.

Ora, poderíamos e deveríamos perguntar de onde viriam essas novas idéias e esse pensamento diferente se o paradigma da formação nas escolas e nas universidades (sobretudo nas de administração) é uma transmissão massiva e cada vez mais concentrada de instruções para a execução de tarefas especializadas? De onde brotaria a inclinação interior dos indivíduos a reestruturar suas próprias formas de pensar ou, pior ainda, (hélas!) a cultura de uma empresa inteira, se o raciocínio analítico e a potência crítica do pensar estão excluídos da preparação da força de trabalho, repito, mesmo a mais elitizada? E ainda, qual é o recrutador que, formado numa escola de psicologia que mais parece de gestão, será capaz de identificar uma pessoa com essas habilidades no meio da massa, se o próprio do pensamento diferente e da idéia inovadora é justamente de escapar a todos os parâmetros que o manual teve tanto cuidado em elencar? Ao contrário do que pode crer a mitologia de nosso tempo, as capacidades de análise, síntese, julgamento e crítica não são inatas. Muito pelo contrário: de seu natural, o ser humano tem um raciocínio bastante simplório.

Há muito, essa constituição do mundo já não é adequada às exigências que a própria tecnologia criou. Daí o sucesso, por exemplo, de cursos livres das chamadas humanidades, cujo caso de sucesso financeiro mais evidente no Brasil é provavelmente a Casa do Saber. (Mas há outros, muitos outros, entre sérios e charlatães.) Existe uma sensação de que a cultura do industrialismo replicado em todas as áreas está fazendo água. Mesmo o sujeito que se considera “altamente qualificado” não consegue mais dar conta de tanta instabilidade nas variáveis. Talvez até, se for um pouco mais sagaz, já perceba que nunca passou de um executor de tarefas.

Que a formação e as expectativas terão de mudar para fazer frente a um mundo pós-industrial que há muito já se instalou sem que o percebêssemos, isso me parece evidente. É claro que a pergunta passa a ser “como” ou, se preferir, “para onde”. Retorno, então, aos dois artigos citados. Como deve reagir o professor, perguntava-se o repórter, diante de alunos que encontram com facilidade as respostas na internet? Ora, a internet é um dos muitos exemplos de como o ser humano, pouco a pouco, vai transferindo parte das responsabilidades de seu cérebro para suportes exteriores a ele.

E isso não é nenhuma novidade: 350 anos antes de Cristo, Platão já ralhava contra a palavra escrita, acusando-a de substituir a memória das pessoas, que, em vez de conhecer seus argumentos e fomentar suas idéias, liam-nas em pergaminhos e se consideravam sábias. (Veja-se como o mundo mudou pouco). Dizia mais o velho filósofo de Atenas: a palavra escrita é estável, não se adapta à variação dos tempos, sua linguagem não se adapta aos diferentes interlocutores, com suas diferentes preconcepções e seu muito variegado nível intelectual. Pior ainda, a palavra escrita é incapaz de defender-se por conta própria quando alguém a critica ou deturpa. Os discursos, dizia ele, esculhambando com a logografia dos sofistas, devem ser escritos na alma, não no pergaminho.

Nem preciso dizer o quanto o mundo mudou desde então e o quanto o texto escrito se tornou fundamental para o desenvolvimento da civilização. O próprio Platão escreveu mais de 60 diálogos e sabe-se lá quantas cartas, mas nem por isso deveríamos dizer que ele estava enganado em suas críticas. Há diferentes maneiras de abordar o texto escrito, algumas melhores do que outras, e a humanidade, ou uma parte dela, aprendeu ao longo desses vinte e tantos séculos a comentar, criticar, responder, interpretar, decompor textos, até que a escrita se tornou uma ferramenta tão importante no conhecimento quanto a memória e o diálogo.

Já passamos por Gutemberg, Hearst, Marconi, Chacrinha, Bill Gates e Google. Cada uma dessas evoluções impôs mudanças na forma de pensar e ensinar. A internet, no caso, torna obsoleta a tarefa de buscar dados na memória ou em compêndios de papel: eles estão facilmente acessíveis a quem souber fazer uma pesquisa no Google com um mínimo de sapiência. (Isso é menos comum do que parece, como pode inferir quem usa programas de estatísticas ou lê o Rafael Galvão.) Cada vez mais, as tarefas que dependiam de executores muito bem treinados podem ser realizadas por programas que, não raro, se encontram online para baixar, e de graça. As primeiras vítimas, décadas atrás, foram as datilógrafas, mas elas certamente não estão sozinhas. Que sirvam de atestado os salários baixos e o desemprego alto.

Não há, portanto, muito mais saída, senão o óbvio: que se deixe aos computadores o dever de executar tarefas como “achar respostas”. Professor, seu problema passa a ser outro: proponha atividades a seus alunos que computadores simplesmente não possam fazer. Coisas como encontrar o que está por trás de um determinado argumento; deduzir conclusões de princípios que maus ou mal-intencionados autores deixaram escondidas; supor o que pode dar errado em tal e tal proposta; compreender por que um problema qualquer da física pode ser resolvido com um cálculo e não com um outro. E assim por diante. De tal maneira que o computador volte a ser a ferramenta indispensável como foi criado, em vez de muleta para a preguiça estudantil.

É claro que isso exigiria uma mudança radical nos princípios que tanto preocupam o jornalista da BBC: cálculos matemáticos e regras gramaticais não bastam mais. Desde pequena, a criança precisa ser ensinada a enxergar as proporções e entidades abstratas em que está fundada a aritmética: somar e subtrair, hoje, são muito pouco para alguém que tem uma calculadora no relógio de pulso. O mesmo vale para a língua. A questão não é o milagre de acertar todos os plurais, mas de conseguir transitar livremente entre conceitos, palavras e coisas. Isso é que é fundamental para que alguém se faça compreender, tanto por escrito quanto oralmente. E garanto que alguém que entende essa ligação fundamental – conceitos, palavras, coisas – bem raramente erra preposições, tempos verbais, pontuação. Tudo isso se torna natural e irrelevante.

Estou ciente de que seria muito custoso massificar um ensino como esse que proponho. Mas não vejo muita alternativa. Investir em alguns poucos centros de excelência me parece uma alternativa péssima, que nos atiraria de volta à aristocracia intelectual dos Eton College, Ivy League e Grandes Écoles da vida, opondo-se (verticalmente) a todo o resto da plebe ignara, que, não demoram os eleitos para diagnosticar, “só serve para atrapalhar”. Porém, mesmo sendo uma opção terrível, é o mais provável de acontecer. Uma estrutura de ensino e formação que produza centenas de milhões de pessoas capazes de raciocínio crítico soa utópico: é caro, muito caro, e dirão os maiores interessados que teria um custo proibitivo. Mas o fator preponderante é provavelmente que gente desse tipo é dura de convencer, cooptar e, claro, controlar. Esse, sim, é um custo muito elevado.

Padrão
barbárie, conto, crônica, crime, desespero, doença, escândalo, imprensa, ironia, obituário, opinião, prosa, reflexão, tristeza

O caso dos pensadores mortos

Condorcet na Sorbonne
Um mistério assustador. As autoridades estão alarmadas com a onda de mortes que assola o país, cujas vítimas seguem um padrão: todas são trabalhadores intelectuais. A cada semana, o corpo inerte de um acadêmico ou pesquisador é encontrado em sua própria casa. Segundo os relatórios de investigação, os óbitos acontecem à noite, quando os pensadores estão solitários, trabalhando em suas escrivaninhas. Morrem de súbito, nenhum deles com carta de suicídio ou marca de violência. A polícia não consegue levantar hipótese nenhuma para dar início aos trabalhos.

Até a última semana, o governo procurava lidar com a crise a portas fechadas, conforme recomenda o protocolo. Os líderes da nação temiam causar pânico na opinião pública, já dada a comoções midiáticas quando confrontada a casos de mortes em série. Por prudência, escolheram a via do silêncio. Porém, a última morte recebeu uma cobertura tão escandalosa dos jornais e das rádios que foi impossível sustentar o segredo.

O corpo de um matemático de renome, professor de cursos disputados, pesquisador das equações mais abstrusas, foi encontrado sentado em seu gabinete, a cabeça sobre uma pilha de papéis, os olhos arregalados, fixos, a boca escancarada, os dedos ainda apertando a caneta. O pobre cientista perdeu a vida no momento em que estava para resolver o mais complexo problema de sua carreira, uma série estatística que haveria de revolucionar o funcionamento das redes de computadores. Contudo, o sinal de igualdade da última linha, que daria a resposta para toda a questão, desfez-se num traço aleatório. Na página, em vez de uma solução, a tinta reproduziu o gesto da mão que traçava o derradeiro desenho, sem forma ou sentido, do homem que expirava.

Confrontado com as suspeitas da população, o governo enfim concluiu que deveria convocar a imprensa para uma coletiva. O ministro da Segurança Absoluta tomou a palavra para explicar, com toda franqueza, as providências que seriam tomadas com vistas a evitar novas perdas para a ciência. Uma força-tarefa de investigação foi montada às pressas, com os melhores detetives dos principais departamentos de elite. Pediu-se a cada antropólogo, sociólogo, filósofo e historiador que evitasse passar a noite sozinho, por via das dúvidas, mesmo que houvesse um artigo a entregar ou uma aula a preparar para o dia seguinte. Um telefone foi colocado à disposição para responder a todas as dúvidas, ainda que não houvesse muitas respostas a fornecer.

O ministro, para finalizar, cuidou de transmitir tranqüilidade à população. Apenas um setor da sociedade, ele lembrou, foi atingido por essas mortes misteriosas. Pelo menos por enquanto. Embora nossas ciências e nossa cultura tenham perdido alguns nomes insubstituíveis, a economia não foi, e nem será, abalada. Todas as vítimas são intelectuais: físicos, geógrafos, psicólogos, jornalistas. Perdeu-se, aliás, um jovem poeta, mas a ligação dessa morte com as demais ainda é difícil de comprovar.

Nenhuma categoria indispensável foi atingida. Ninguém do mercado financeiro, à exceção do corretor com overdose de heroína e o investidor que, tendo feito uma má escolha, pulou da janela do escritório, duas tragédias sem relação com o caso. Ninguém dos transportes, nem da geração de energia, nem da televisão ou do varejo. Faleceu, sim, um importante conselheiro político do presidente da República, é verdade, enquanto planejava a fusão de dois partidos progressistas que, pelo andar da carruagem, terão de seguir separados e em conflito. Mas essa perda, embora lamentável para as instituições, não haverá de atrapalhar a gestão do Estado. O chefe de governo é perfeitamente capaz de tomar suas próprias decisões, baseado apenas em seu instinto, seu bom senso e as opiniões sempre ponderadas de quem costuma discutir política em nossas cidades.

Portanto, concluiu o ministro, não há motivo para alarme. A polícia trabalhará com afinco. O quotidiano de cada um não está ameaçado. A vida de todo mundo pode seguir tranqüila sem as teorias, as propostas e as advertências de quem é pago tão-somente para pensar, falar e escrever. Nada mudará, a não ser para aqueles que têm um pensador na família; esses viverão em constante receio de perdê-los. Mas que não se deixem dominar pela falta de esperança, uma vez que os zelosos policiais da pátria não medirão esforços para solucionar o caso.

Para os demais, não há risco algum, o ministro fez bem questão de frisar. Nada mudará. Os hábitos, os problemas, as condições de vida, os conflitos, as paixões, os preconceitos, as misérias. Para levar a mesma vida de sempre, afinal, não é necessário refletir. Basta continuar fazendo o que já se fazia. Basta ter as mesmas opiniões e os mesmos gostos. Basta ter fé nos mesmos profetas, sonhar os mesmos delírios, desejar os mesmos luxos levianos. A perda, no fundo, não é tão grande quanto chegou a parecer.

* * *

Posso perceber que as mortes vêm perdendo espaço no noticiário. Ninguém comentou quando um par de artistas contestadores também apareceram sem vida. Inexplicavelmente. A força-tarefa, envergonhada com a ausência de resultados, foi desmembrada e realocada para o combate ao tráfico de armas, um problema muito mais urgente e que não pára de crescer. A única grande reação teve lugar nas universidades, que fecharam ou reduziram os cursos de ciência pura e reforçaram o orçamento para Administração de Empresas, Turismo e Relações Públicas. Falta de interesse, elas explicam.

O entregador de jornais da minha rua riu às gargalhadas da nota de pé de página com o obituário de um grande semiólogo que tombou nesta madrugada, quando as redações já estavam a ponto de fechar as edições. O garoto quase imberbe achou engraçado o nome do sujeito, realmente muito difícil de pronunciar. Só ficou quieto porque um guarda que passava se aproximou para multá-lo; ele largara sua motoneta sobre a calçada, como de hábito. Diante de meus olhos, os dois se engalfinharam após um breve intercâmbio de impropérios.

Não foi fácil separar a briga, mas, finalmente, terminamos todos no boteco da esquina, tomando cerveja com tremoços. Discutíamos o de sempre. Uma mulher famosa, um time ruim. Deixei de me preocupar com o mistério dos intelectuais tombados, mais insondável do que os problemas que eles mesmos faziam tanto esforço, e tanto sofriam, para abordar. É um caso do passado, convenhamos. Não restam, mesmo, muitos mais para morrer.

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

Padrão