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O impasse e os impasses

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Caetano Veloso

Desculpe usar jargão; não vejo outro jeito para expressar meu ponto de vista sobre o cenário político brasileiro, com suas passeatas, seu Congresso tenebroso, seu fisiologismo encastelado, seu presidencialismo em migalhas; é que me parece existir um pano de fundo nebuloso para tudo que está acontecendo, e só consigo resumi-lo com a seguinte frase: o Brasil está se desindividuando. Agora vou ter que me dar ao trabalho de explicar o que quero dizer com isso, mas, numa tentativa provavelmente frustrada de segurar o leitor pelos parágrafos abaixo, já adianto que o argumento só vai ficar claro ao final…

Tudo parte de uma pergunta, que pode ser desdobrada em várias: será que não estamos vivendo um período em que a normalidade se tornou impossível? Será que os procedimentos cristalizados há séculos, que se renovam periodicamente, respondendo à sucessão dos períodos históricos, não estão começando a sofrer para fazer essa renovação? Será que os esforços dos nossos caciques patrimonialistas para dominar de cabo a rabo o plano social e o sistema político não seriam uma reação à caducidade das próprias estruturas patrimonialistas?

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É claro que essas perguntas derivam de uma mera intuição, mas essa intuição vem vibrando cada vez mais intensamente de uns tempos para cá. Já há alguns anos, em conversas e entrevistas que tenho feito – por motivos em geral profissionais, mas nem sempre – com sociólogos, cientistas políticos, historiadores e até economistas, o tema dominante tem sido a crise da representatividade, os impasses políticos, os nós que parecem impossíveis de desatar. Acredito que essa crise não é mais segredo para ninguém.

Mesmo assim, um subtexto perpassa essas conversas, e nele algo como um otimismo se deixa entrever. De diferentes maneiras: seja porque o comportamento dos motoristas é menos grotesco do que costumava ser, seja porque camadas populares estão resistindo mais incisivamente a arbitrariedades, seja porque se espera dos novos consumidores do país uma postura mais pragmática em política, seja por mil outras coisas.

Resumindo o problema

Caesar: The ides of March are come.
Soothsayer: Aye, Caesar, but not gone.

Shakespeare

Intimamente, compartilho desse otimismo, sem muita certeza do porquê. Afinal, o que temos diante dos olhos é um desmoronamento simultaneamente econômico, social e político que dá todos os motivos para ficarmos assustados (sobre isso, recomendo o texto do Manoel). O Executivo federal está completamente impotente e desconectado da realidade, sem capacidade de articulação política e alienado de todas, absolutamente todas as classes sociais – excluídos alguns pelegos, no sentido mais puro da expressão. O Congresso está entregue ao fisiologismo mais primário, mas também talvez mais representativo da estrutura dos poderes do país (e do qual dizemos, talvez com açodamento, que representa o perfil da própria sociedade). Da oposição, porém, não se pode esperar nada, a não ser os desastres que seu partido mais destacado tem protagonizado em Estados como São Paulo e Paraná, protegido que está pela imprensa que deveria fiscalizá-lo.

DILMA-ZANGADA

Enquanto isso, cristaliza-se no meio social um discurso genérico de apartidarismo que, como veremos, por um lado só reforça os vícios do sistema e, por outro, aceita e reproduz falsas polaridades sócio-políticas, a ponto de torná-las operantes, apesar de serem falsas – ou justamente por causa disso. Por outro lado, movimentos sociais, intelectuais e outras categorias que podem propor narrativas e caminhos diferentes estão isolados em grupos pequenos demais e com pouco respaldo partidário, principalmente depois que o petismo se tornou um tucanismo de discurso inflamado. Um terceiro ator importante é a própria população, cujo principal interesse é tocar a vida, mas se vê tomada pelo fogo cruzado entre um governismo que vive nas nuvens e uma oposição que ainda não digeriu completamente o fim da Primeira República1.

Esbocei a questão política e a social, vamos tratar agora do econômico. Em janeiro, cheguei a ter a intenção de tratar do tema “ajuste fiscal” do ponto de vista dos recortes políticos, como fiz com o problema da tarifa de ônibus. Faltou tempo e, ainda por cima, acabei atropelado pelos eventos. Mas o fato é que só existe a necessidade de um ajuste fiscal porque se tentou empurrar com a barriga a estrutura insustentável de uma economia oligopolizada, latifundiária e rentista que tenderá sempre ao colapso, exceto quando sobrarem capitais baratos no mundo.

Desde sempre, tratou-se de um problema político e é por isso que não tenho muita paciência para discutir o governo com base em índices macroeconômicos. Enquanto estávamos mais preocupados em saber se concessão é privatização ou não, as empresas que se beneficiariam dessas concessões desviavam somas bilionárias para entregar uma infraestrutura capenga, elefantes brancos futebolísticos e floresta desmatada. Enquanto discutíamos se o bolsa-família deixa as pessoas preguiçosas, o Banco Central usava o câmbio para segurar a inflação, sucateando de vez a já tênue capacidade produtiva do país. Mas isso só acontecia, também, porque o problema político nunca foi abordado. Se ele transborda para a economia, o que é inevitável, é porque sempre foi preciso calcular os orçamentos e gerir o Estado de modo a assegurar a continuidade dos poderes patrimonialistas, o que reflete em desigualdade, ineficiência, déficits, inflação.

Só para reiterar: as discussões que vemos nos jornais sobre “mais Estado” ou “menos Estado” (ou em sua versão mais intragável: “intervenção na economia”…) são anódinas, estéreis, soporíferas. “Grande” ou “pequeno”, o Estado no Brasil é desenhado para cumprir uma função que, com todas as suas transformações, se mantém essencialmente a mesma desde a colônia. Lembro de petistas em 2010 comemorando a derrocada do PFL2, mas de que adianta tudo isso, se o espírito que ele encarna está espalhado por PMDB, PP, PR, PSD, e agora também PSDB e, cada vez mais, PT3? Por isso, hoje, é preciso falar do patrimonialismo. Vou tentar pincelar essa questão mais para baixo.

Assim, de tantos motivos para pessimismo decorre a pergunta: por que aquele subtexto otimista de que falei acima? Por que eu me permiti traduzir aquela intuição de transformações em perguntas? Porque, como eu disse, vejo a presença de uma desindividuação dos sistemas, dos procedimentos, das estruturas na política e, principalmente, na sociedade. Daí a sensação ininterrupta de crise, que traduz a constância de conflitos e tensões que não têm mais tanta clareza de onde podem se agarrar. Mas isso não significa que o final desse processo será feliz necessariamente. Daqui por diante, com o perdão do clichê, afirmo que tudo, absolutamente tudo pode acontecer.

Um sistema diapartidário?

“Nem de direita, nem de centro, nem de esquerda.”
Gilberto Kassab, sobre o PSD

Provavelmente o primeiro problema com que nos deparamos ao tentar destrinchar esse estado de crise (estado de crise? Estado crítico, então!) é a mais que conhecida deslegitimação dos partidos políticos em todo o mundo.4 Ela é fruto, como sabemos, de fenômenos contemporâneos bastante estudados: a mutação do regime de soberania (somos ou não somos westfalianos?), os novos meios de comunicação digitais (a “revolução do Twitter” existe ou não?), as transformações no sistema de produção e, por extensão, de trabalho (cada um é um “empresário de si mesmo” ou uma fonte de exploração cognitiva?), a financeirização do sistema econômico global. Isso vale para a Europa, onde o Syriza e o Podemos não me deixam mentir. Vale para os Estados Unidos, onde o “big money” manda e desmanda nos republicanos como nos democratas, deixando como cortina de fumaça o brinde de um conservadorismo republicano caricato, para as manchetes do New York Times. Vale para o mundo todo, praticamente.

Mas talvez valha um pouco menos para o Brasil, e esse é o pulo do gato. É difícil estimar o quanto a crise dos partidos brasileiros reflete a crise dos partidos no mundo, mas pelo menos uma particularidade existe que é de grande importância. O sistema político no Brasil funciona atravessando os partidos e não com base neles. O exemplo clássico é o parlamento, onde as bancadas temáticas (da bala, da bola, ruralista, evangélica, estaduais…) são mais determinantes que as partidárias. É por isso que falei daquele “espírito” patrimonialista que perpassa a quase totalidade dos partidos, e que a opinião publicada “redescobriu” agora que Eduardo Cunha, representante do tal “baixo clero” (mas sempre ligado a figuras de altíssima patente, a começar por PC Farias), assumiu a presidência da Câmara e botou as asinhas de fora – são asinhas bem grandes, aliás. Quantas vezes não ouvi cientistas políticos e afins suspirando porque praticamente não temos partidos programáticos, que nossos partidos não têm projeto de país5, que eles são dominados por grupos de interesse ocupados apenas em garantir sua própria bocada… Enfim, tudo isso para dizer que a deslegitimação mundial dos partidos atinge, no Brasil, partidos que já não gozavam de muita legitimidade6.

cunha mercadante

Essa curiosa particularidade talvez sirva para iluminar um pouco melhor o tema do apartidarismo que aparece em grande parte das mobilizações desde 20137. Em 15/3, apareceu ainda com maior intensidade, expressa inclusive por jovens lideranças que há anos vêm tentando criar um novo partido conservador no país8. Tomado em sentido literal, esse apartidarismo parece ser meramente a expressão de vontades que não se organizam, não se estruturam, não se operacionalizam. Porque a via tradicional de estruturação e operacionalização de movimentos políticos foi – e parece continuar sendo – a via partidária. Se posso me permitir um excurso, esse tipo de eclosão aparentemente espontânea de raiva desestruturada, pouco habilitada para perenizar-se como atividade política, joga lenha na fogueira de quem quer ver aí nada mais do que uma estratégia golpista.

Mas o que vale a pena reter de tudo isso é que, historicamente, um certo tipo de apartidarismo é o que podemos chamar de viga-mestra da política no Brasil. Afinal, como eu disse, no sistema político brasileiro os partidos são uma via de passagem e travessia; talvez nem sequer existissem se não fosse pelos recursos do fundo partidário e uma série de dispositivos legais que tornam a atuação partidária obrigatória…

E isso não é de hoje, embora possa parecer, quando pensamos no Centrão e, mais ainda, na criação do (P)MDB como saco-de-gatos oposicionista pela ditadura9. Se olharmos para o sistema pré-golpe, veremos dois partidos (PSD e PTB) fundados pelo mesmo líder (Getúlio) para garantir sua própria influência e reforçar seu ideário corporativista, e mais um partido (UDN) tão pouco interessado no jogo democrático e propriamente partidário que se especializou em fomentar golpes em série, até que um deles funcionou. Antes do Estado Novo – aliás, antes de 1930 –, tínhamos partidos estadualizados que nada mais eram do que os clubes em que se entendiam as oligarquias. Os eventos que conduziram à revolução de 30 são completamente desprovidos de sentido se não levamos isso em conta. Antes ainda, tínhamos o Império, com seus “saquaremas” e “luzias”, de quem se dizia que “nada mais parecido com um saquarema que um luzia no poder”10

Resumindo, o Brasil não é um país do qual se possa dizer que o apartidarismo seja a rejeição ao sistema, nem mesmo (como faz quem quer escarnecer) a atitude do alienado “contra tudo que está aí”. No Brasil, o apartidarismo no mais das vezes abre a porteira justamente para o que está mais aí: o meta-partidarismo (ou antes, dia-partidarismo) reinante. Com isso, não chega a ser tão estranho que líderes políticos e partidários apareçam alegres e fagueiros em manifestações que se pretendem calcadas na sociedade civil…11

Milhões em ação

Misturo poesia com cachaça
E acabo discutindo futebol

Toquinho e Vinícius de Moraes

Poderíamos aproveitar aqui a simbologia do uniforme da seleção brasileira, afirmada reiteradamente por aqueles que querem desqualificar completamente as manifestações de 15 de março. A CBF é uma instituição que, seguramente, dez entre dez brasileiros definiria como muito corrupta (quanto a mim, de nada sei, pobre de mim). Mesmo assim, a camisa com seu escudo estrelado foi amplamente trajada por brasileiros que saíram às ruas “contra a corrupção”. Paradoxal, claro, mas condizente com a pretensa generalidade da pauta (“a” corrupção) e com a seletividade da indignação – a maior manifestação tendo ocorrido na cidade que pode ficar sem água enquanto sua companhia de saneamento, sem deixar de distribuir lucros acima do permitido no estatuto, está à beira de quebrar.

bebe baba cbf

A questão é que a idéia da seleção brasileira traz consigo uma sensação de nacionalismo, nem tanto por causa do futebol, mas pelas cores: o verde-e-amarelo que, nessa linha de raciocínio, se oporia a um vermelho anti-brasileiro, “bolivariano”, sei lá mais o quê. Deixando de lado a constatação de que nacionalismo e amor à pátria são virtudes difíceis de associar ao perfil social presente nas manifestações, a “antinomia da CBF” é a perfeita expressão do espírito político brasileiro, ou, para usar uma fórmula menos mística, de nosso modus operandi mais arraigado. A confederação pode ser corrupta, pode ser caduca, pode ser ineficiente. Pode transformar um potencial esportivo único no mundo em derrota acachapante, sem que isso conduza a um processo de reformulação. Pode qualquer coisa, contanto que mantenha em movimento a roda da exploração do futebol no Brasil, em que cada ator tem seu papel: o clube, o torcedor, o jogador, a televisão, o cartola: e nada disso pode sair do lugar.

Por isso, protestar contra a corrupção usando a camisa da CBF não é mais absurdo que, como se dizia no ano passado, vociferar contra os gastos da Copa e depois comprar ingresso VIP no “Novo Maracanã”. Nem mais absurdo que deplorar as ilegalidades cometidas pelo PT e fechar os olhos para o cartel dos trens. Nem mais absurdo que aplaudir a atuação descaradamente ilegal da polícia em nome de uma guerra aos bandidos.12

Falando em polícia, um parêntese: certamente é chocante ver que muitos manifestantes do dia 15 tiraram fotos ao lado de policiais da tropa de choque, crianças inclusive, como por sinal já tinha acontecido durante a Copa do Mundo, quando sabemos que manifestações que reivindicam algo efetivamente transformador na sociedade recebem das forças da ordem (um determinado tipo de ordem, bem entendido) um tratamento brutal. Mais ainda quando sabemos o quanto a corrupção que tanto nos irrita e decepciona é inconcebível sem o concurso de um corpo que administre a violência necessária para enquadrar o dissenso e os comportamentos desviantes. E mais ainda, claro, quando sabemos da corrupção diretamente praticada por policiais: achaques, propinas, provas plantadas e assim por diante.

Essas coisas parecem absurdas e chocantes porque concebemos um universo político abstrato, ao qual os comportamentos deveriam se conformar. Na concretude da vida social e da prática política no país, essas contradições são quase, se posso falar assim, naturais. São imanentes. A confraternização com a polícia é um claro sinal de que aquela revolta não se põe de maneira nenhuma em oposição aos vícios das nossas estruturas políticas, mas flui junto com elas e no interior delas13. Então, se por “absurdo” entendemos aquilo que é logicamente contraditório e por isso simplesmente não pode ser, não existe absurdo nenhum, mas a conformidade com a tradição social e política do país. Algo que, a julgar pelos impasses atuais, que na verdade já vêm dando sinais de vida há algum tempo, está se desindividuando.

Patrimonialismo

“As distâncias grandes e as comunicações difíceis deixavam, nas dobras do manto de governo, muitas energias soltas, que a Coroa, em certos momentos, reprimirá drasticamente e, em outros, controlará pela contemporização. A rede oficial não cobrirá todo o mundo social, inaugurando, com o viço haurido nas capitanias, um dualismo de forças entre o Estado e a vida civil. (…) Consolidou-se, na Colônia, o regime político e administrativo metropolitano.”

Raymundo Faoro, Os Donos do Poder

É por isso que temos de voltar ao tema do patrimonialismo, do qual se falou muito no começo do ano, quando pegaram um juiz passeando com o carro apreendido de Eike Batista no Rio. Imediatamente voltou à tona a definição do patrimonialismo como “tratar a coisa pública como se fosse propriedade particular”. O Judiciário é pródigo em confusões entre público e privado, a começar pela idéia de que um magistrado não pode ser multado, nem lembrado de que não é Deus. Mas por mais que nossos juízes, desembargadores e quejandos frequentemente se saiam com uma dessas, não estão sozinhos: aparentemente, arquitetas também reivindicam o direito a não tomar multa… e provavelmente qualquer categoria profissional com anel de doutor e direito a prisão especial.

Quanto ao conceito de patrimonialismo, como quase todos os conceitos, este adquire formas muito diferentes dependendo de quem o usa, de Max Weber a Sergio Buarque, de Raymundo Faoro a Florestan Fernandes… Mas o que acho interessante no uso desse conceito para falar do Brasil atual é seu caráter para-estatal e para-partidário. Falando especificamente de Faoro e seu “patrimonialismo estamental” herdado do medievo português, cabe notar que, do ponto de vista da Coroa, a coisa pública era tratada como privada porque, rigorosa e juridicamente, era mesmo: desde o século XIV, as terras cedidas à nobreza eram na verdade propriedade da Coroa e a aliança entre a Coroa e os proto-capitalistas comerciais14 conhecidos como “descobridores” também tinham como base uma noção de “bens da Coroa”.

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Nessa leitura, ao longo do tempo, a ocupação e a administração econômicas do território brasileiro seriam frutos de diferentes entendimentos sucessivos entre o poder central e seus legatários. Todos eles teriam em comum o estranho arranjo em que a propriedade e o direito de exploração se sobrepunham, às vezes se identificando, às vezes se diferenciando, mas nunca se determinando completamente. A última frase talvez tenha soado esquisita, mas é porque trata de algo esquisito, mesmo: o patrimonialismo estamental não é nem um patrimonialismo propriamente estatal, nem propriamente privado, mas um arranjo em que sempre existe um espaço de respiração (e acomodação) entre os distintos interesses de grupos privados e a instituição na qual eles se encontram, isto é, o Estado. É por isso que as leituras que querem fazer de Faoro, Buarque e outros os inimigos mortais do burocratismo e, por extensão, do Estado, são incompletas; o tamanho do Estado e o papel de seu funcionalismo não representam uma maior ou menor intervenção na economia, tomada como se fosse um sistema autônomo. Nesse contexto, o Estado tem a forma e o tamanho que resulta desses arranjos de poder, independentemente do grau de interesse por Hayek ou Keynes do partido no poder.

Ainda assim, a análise não se completa sem que falemos daqueles que estão excluídos desse arranjo: a sociedade civil, ou simplesmente, “o povo”, enquanto mobilizado para influenciar os rumos do Estado e, por extensão, do país15. Semelhantes mobilizações, mesmo quando conseguem se organizar partidariamente, o que não é certo de acontecer, sempre esbarram nesse sistema político formatado para funcionar com base em arranjos de cúpula e distribuição de benesses para as camadas médias da administração16. Quando se organiza demais, por sinal, essa mobilização apanha e apanha feio, seja da polícia, seja do exército, seja da imprensa. E quase sempre apanha no parlamento.

Digo “a sociedade civil enquanto mobilizada” porque a sociedade, enquanto tal, não chega a se mobilizar. Acomoda-se a esse sistema e encontra meios de funcionar dentro dele, apesar de todas as ineficiências que daí decorrem (estou falando das camadas médias e dos remediados). É natural que seja assim: as operações em qualquer sistema são determinadas pelas significações que esse sistema é capaz de produzir, dadas as informações que capta. As formas de vida na sociedade brasileira são as formas de vida que correspondem à sua estrutura política patrimonialista, estamental, colonizada e assim por diante (o que não falta para definir o Brasil são adjetivos).

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Falei em ineficiências? Seria mais justo falar em injustiças, horrores, crimes contra a humanidade. É uma sociedade capitaneada por latifundiários (ruralistas), monopolistas, rentistas, extrativistas, no sentido literal ou no figurado. Aí está uma das causas da enorme desigualdade social. Se o volume da população capaz de mobilizar-se e dotada de voz fosse mais amplo, esse sistema ruiria, porque não seria possível fazer tantos arranjos de cúpula sem contemplar demandas de uma camada média suficientemente disseminada. Se não vigorasse um medo constante, nas periferias, de morrer pelas mãos da polícia, e nos bairros centrais, de tomar tiro de assaltantes, o silêncio teria de romper-se em algum momento, por absurdo. E sobretudo: se as famílias da classe média não vivessem com a sensação de que precisam se esconder a todo tempo por trás de muros altos, grades, seguranças privados etc., seria reforçado um espaço social hoje muito fraco no Brasil, aquele capaz de demandar do Estado os serviços públicos que são sua obrigação – mas não podem ser cumpridos entre nós, porque muito é gasto produzindo os arranjos entre elites díspares, quase todas patrimonialistas. Por isso, não chega a surpreender que os saltos de desenvolvimento social no Brasil sejam sempre abortados a meio caminho…

A elite que não é

A crise tá virando zona
Cada um por si, todo mundo na lona
E lá se foi a mordomia
Tem muito rei aí pedindo alforria, porque
Tá cada vez mais down no high society

Elis Regina

Tendo discutido o fundo histórico e sociológico do problema, é o caso de abordar mais um ponto levantado desde que as pessoas tomaram as ruas, sejam os pelegos do dia 13, sejam os foradilma do dia 15. Muita gente ficou rouca de gritar, muita gente ficou com tendinite de escrever, sobre o caráter elitista da manifestação de domingo. Parece ser questão de honra colar nos foradilma o rótulo de “elite branca”, quando se é contra. Também parece ser indispensável escapar desse rótulo, quando se é a favor, porque, afinal, é preciso passar a impressão de que “o povo” se levantou contra o governo petista17.

Aqui, também, existe em filigrana uma tensão reveladora: não é inconciliável que as seguintes duas proposições sejam verdadeiras. Primeiro, que o perfil de quem saiu à rua no domingo era de classe média, majoritariamente branco, com ensino superior, eleitor de Aécio Neves na última eleição e assim por diante. Segundo, que as classes populares, dos miseráveis aos emergentes, dos urbanos aos rurais, dos nordestinos ao sul-maravilha, estejam também muito insatisfeitas com a condução do país e, em particular, o desempenho da presidenta. (A esse respeito, importante leitura neste link.)

O que parece ser inconciliável, ao contrário, é a aceitação dessas duas frases (que, ao que tudo indica, são verdadeiras efetivamente) e a constatação de que um abismo separa os dois grupos citados. Um abismo sem ponte, largo e alto, com jacarés famintos no fundo, uma ventania que impede qualquer outra forma de travessia e uma neblina tão espessa que não se pode ver nada. Isso sim é significativo. O dito “povão” não quer se vincular, na Paulista, àqueles que considera serem playboys; e os ditos playboys da Paulista teriam até medo de ver o povão chegando em grandes quantidades, mesmo que fosse para confraternizar com eles. Provavelmente confundiriam com black blocs e mandariam o Choque para cima. Estou dizendo alguma mentira?

Mas o que, então, isso prova? Ou, para enfraquecer um pouquinho o nível de exigência: o que isso sugere? Bom, todos já sabemos que a desigualdade (a clivagem…) social é espantosa neste país, então não cabe insistir. Também sabemos da questão racial, que é inescapável, ainda que muitas vezes invisível. Sabemos ainda que as diferentes camadas sociais, a dos “com voz” e a dos “sem voz”, passam a maior parte do tempo tentando se proteger uma da outra, quando não estão querendo tirar proveito uma da outra. Então, direis, que raios isso sugere?

Recuperando tudo que disse acima, eu chutaria que o que está sugerido nesse problema do elitismo versus povão é que os momentos de grande mobilização na sociedade brasileira sempre acabarão batendo nesse muro, que é a versão mais quotidiana do muro sociopolítico definidor da, digamos assim, brasilidade18. Afinal, os dominadores patrimonialistas sempre poderão manobrar a clivagem social, seja com o discurso da “bandidagem”, que estabelece um nós-contra-eles, seja no paternalismo de quem tenta doutrinar seus empregados (que são quase da família) sob o pretexto de educá-los, “ensiná-los a pescar” e coisas assim, seja postulando que todo eleitor de seu adversário político é analfabeto, seja com intervenções militares, voto censitário e quaisquer outras loucuras que venham a ser consideradas. Cabe dizer que o anverso dessa moeda é o êmulo populista, com seu discurso de “nós contra as elites brancas”, ao mesmo tempo em que articula e compõe com as verdadeiras elites econômicas do país, os latifundiários, ruralistas, oligarcas, banqueiros, extrativistas…

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Outro ponto interessante que poderíamos desenvolver em outra ocasião: o Brasil é um estranho país que tem uma elite que não é elite. Observe o espanto e até escárnio que algumas pessoas demonstram ao descobrirem que, apesar de ganharem pouco, muito pouco, figuram no topo da distribuição de renda do país. Elite branca, pois, porque está acima de um gigantesco contingente de pessoas à beira da exclusão completa – e que não costumam ser brancas. Mas não, propriamente, elite, porque não tem poder efetivo sobre os rumos do país. Triste sina. Não é à toa que sejam pessoas tão amarguradas e mesquinhas – essa classe à qual, pensando bem, eu pertenço… Também não chega a surpreender que, quase sempre, se aliem ideologicamente às elites de facto. É preciso diferenciar-se da ralé!

Na hora do voto

Meu irmão se liga no que eu vou lhe dizer
Hoje ele pede seu voto
Amanhã manda a polícia lhe bater

Meu irmão se liga no que eu vou lhe dizer
Hoje ele pede seu voto
Amanhã manda os homem lhe prender

Bezerra da Silva

Agora começamos a vislumbrar o aspecto eleitoral de todo esse problema. Eu diria que um dos fatores que causam tanta instabilidade nas fases democráticas da política brasileira é o estranho hábito que o eleitor tem de, ocasionalmente, eleger para o Executivo Federal alguém com quem sente uma certa identificação o amplo contingente populacional precariamente inserido no sistema econômico. Isso tem acontecido a despeito da pressão contrária das mídias de massa, das alianças políticas, da interferência de poderes econômicos ou armados. E isso vale para identificações reais (com Lula, por exemplo) ou imaginárias (com Getúlio, Jango, Dilma). A identificação pode ser fruto de marketing, populismo, transferência de carisma, o que for. Fato é que não há como garantir que sejam eleitos sempre candidatos que agradem diretamente às camadas superiores.

Isso não significa que esses indivíduos governarão “para o povo” e “contra a elite”, é claro. Aliás, nada impede que sejam oriundos da mais elíptica elite, como os gaúchos citados acima. Significa, no máximo, que serão mobilizadas expectativas que podem provocar rupturas desagradáveis. Expectativas que, cedo ou tarde, poderão ser frustradas, gerando ressentimento. Retóricas se inflamam, de lado a lado, embora ambos os pólos gravitem em torno da mesma acomodação com as figuras dominantes. A partir desse cenário, para benefício da burocracia estamental, representante dos (para usar a expressão de Faoro) donos do poder, desenvolve-se um impasse quase constante. Esse impasse pode ser traduzido assim: nem os políticos considerados conservadores podem governar para o conjunto da população, nem seus adversários, auto-intitulados progressistas (mesmo que não o sejam) podem mesmo governar para as camadas que os elegeram – se é que querem fazê-lo…

Um resultado disso é que nossa política em tempos democráticos enfrenta instabilidades periódicas: caricaturando um pouco, teremos ou governantes completamente sem identificação popular, ou governantes rejeitados pelas camadas mais favorecidas (o que é diferente de dizer “elite”, como vimos acima). Essa instabilidade, por si só, não chega a ser um problema, se for catalisadora de novos arranjos, mais abrangentes, justos e estáveis. Até hoje, não foi o caso: ou recaímos em ditaduras, ou testemunhamos o recrudescimento da dominação patrimonialista – como, pelo menos nos últimos meses, tem sido o caso da crise atual.

Por isso, parece que temos que nos contentar com alguns pequenos movimentos que não chegam a se concretizar como tendências sustentadas de reformulação das estruturas sociais no Brasil, para a paulatina construção de uma sociedade mais equitativa, justa, humana. Enfim, funcional. Inclui-se uma camada aqui, outra acolá, mas não se chega a distribuir, nem de maneira parcelária, os mecanismos de atuação social e política. Até hoje, sempre que pareceu que algo assim poderia vir a acontecer, houve alguma ruptura traumática: um suicídio, um golpe militar, a constituição do Centrão na Constituinte, a descoberta de enormes corrupções…

Segundo passo? Não!

Erst kommt das Fressen,
Dann kommt die Moral

Bertolt Brecht

É com esse pano de fundo que tenho batido na tecla de que o governo petista se absteve, ou melhor, se recusou a dar o “segundo passo” da inclusão social. Longe de mim negar a importância e o potencial histórico das transferências de renda do governo Lula e do engrossamento da classe consumidora. É claro que não existe uma “classe consumidora”, mas essa expressão foi a única que me veio à mente para condensar os diferentes argumentos sobre o que aconteceu na última década, dos ufanistas (“nova classe média”) aos pé-no-chão (“os batalhadores e a ralé”), passando pela crítica mais consistente e corrente, segundo a qual uma inclusão pelo consumo é no mínimo capenga e no máximo ilusória.

Não creio que seja ilusória, mas “capenga” é uma boa definição. E é por isso que vejo a inclusão pelo consumo como um “primeiro passo”, ainda que tímido. Ao consumir, nunca tendo consumido antes, o indivíduo sente que é alguém e isso está longe de ser trivial. A diferença entre sentir-se “sendo alguém” ou “sendo nada” (ou “lixo”, expressão que muito se usa) é brutal. Ignorá-la ou apagá-la é igualmente brutal, além de enganoso.

Mas aí é que reside o problema: “ser alguém”, mas alguém quem? E mais: eu sei que sou alguém, mas será que os outros sabem? E ainda: sou alguém agora, mas vou continuar sendo amanhã? E se eu deixar de ser alguém, o que vai ser de mim? Como voltar a ser “lixo”, tendo provado o gosto de entrar numa loja e sair de lá com um produto? – E nem cheguei a falar em “ser bem tratado”…

É preciso levar a sério esse problema. Isso tudo são demandas. São desejos. São impulsos possíveis, ações virtuais, que há alguns anos flutuam Brasil afora sem conseguir, na maior parte do tempo, fixar-se em tendências e reivindicações concretas e articuladas. Mas esses impulsos possíveis e ações virtuais vão continuar aí, flutuantes, até que algo aconteça, para o bem ou para o mal: quer sejam brutalmente reprimidas, quer se cristalizem em mobilização social. Os dados estão lançados.

Porém, enquanto for o caso que, como gosta de dizer o mesmo Lula, banqueiros lucram faraonicamente ao mesmo tempo em que os miseráveis entram para a sociedade de consumo, tudo parece estar muito bem. Quero dizer: o jogo pode continuar indefinidamente. Mas esse primeiro passo da inclusão social, em que as pessoas passam a comer e podem consumir, não se sustenta sozinho, porque inclusão é um fenômeno reticular – cada etapa alimenta-se da anterior, mas fenece quando não conduz a uma etapa posterior.

No ponto em que estamos, nada pode acontecer sem que haja rupturas. Rupturas históricas e poderosas, em que as práticas habituais, as estruturas bem estabelecidas e as divisões estamentais que descrevi nos tantos e tantos parágrafos acima sejam abalados e, oxalá, implodidos. Não será um economista a fazer isso, porque se trata, como eu disse no início, de uma questão de funcionamento do sistema econômico a partir da ancoragem social. Mas a âncora social não é mais tão claramente delineada como foi no passado, então será necessário que a operação e a estruturação da economia também se alterem radicalmente. E isso passa, que não reste dúvida, por uma profunda transformação da política que se faz neste país, tanto em Brasília quanto nas ruas de todas as cidades, sem falar nas assembléias partidárias.

Estou convencido de que grande parte da crise atual gira em torno do fato de que, perguntado pelas musas da História se teria a força de vontade, a coragem, a audácia de levar a cabo essas rupturas necessárias, para podermos dar o segundo e o terceiro passos numa verdadeira inclusão social, o governo petista respondeu com um sonoro “não”, e sem hesitações. Desconfio também que a resposta veio acompanhada de um sorriso sardônico, daqueles no canto da boca: “agora que nos demos bem”? (Recomendo o artigo de Eliane Brum a esse respeito.)

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Falando mais sério, é possível que tenham acreditado que tudo se resolveria por conta própria se o país continuasse crescendo. Ou então, que os recursos do pré-sal fariam algum milagre e não iriam parar no orçamento das quatro irmãs, dos trinta partidos ou dos poucos e gigantescos bancos privados ainda existentes por aqui. Nenhum sinal do inverso parece ter feito efeito. Nem o afastamento da esquerda militante, nem a carga pesada que o PT sofreu a partir do mensalão, nem a perda do maior aliado histórico, o PSB, nem a saída do grupo de Marina Silva, nem as exigências cada vez mais vorazes do PMDB – que culminam agora com Eduardo Cunha, mas já vinham desde a última legislatura, quando o PT tentou de todo jeito enfraquecer seu hoje principal aliado e foi derrotado a cada tentativa. Quando a população foi as ruas pedindo melhor transporte urbano e menos cacetada da polícia, o governo petista preferiu aliar-se à direita mais inflexível (na figura do sr. Alckmin, e quero só reiterar que “inflexível” foi o melhor eufemismo que encontrei), oferecendo a Força Nacional de Segurança e ao mesmo tempo, paradoxalmente, acusando uma conspiração da direita.

Por essas e outras, não vejo muito sentido em esperar que as rupturas venham do nosso tradicional partido de esquerda, ou ex-querda, como gostam de chamar. Não sei se por falta de virtù, acomodação no poder ou benefícios financeiros, o PT já deu seu “não” à ruptura com o patrimonialismo estamental. No ponto em que estamos hoje, ao contrário, os líderes do nosso dia-partidarismo só têm a ganhar com a perenização da crise do governo petista. Supondo que eu fosse o líder de um partido que detém a presidência das duas câmaras do parlamento, perante um Executivo paralisado e incompetente, com a mídia e a classe média querendo ver o circo pegar fogo, o que eu faria? Mais ainda: o que eu faria se, além disso tudo, ainda por cima eu e muitos colegas meus, importantes colegas, próximos de mim e ocupando postos altos da República, estivessem envolvidos em um gigantesco escândalo de corrupção?

Resposta: eu manteria o governo na frigideira pelo máximo de tempo possível. Eu o cozinharia a fogo brando. Bloquearia suas iniciativas só até o ponto em que ele se torne quase inviável, mas não completamente, e manteria suspensa no ar a conversa sobre impeachment, sem levá-la adiante, mas fazendo parecer que vou conduzi-la. Seria o cenário ideal para alguém nessa posição: o governo seria refém enquanto não tivesse a imaginação, que não tem, para se safar; os holofotes, no meio de tantas denúncias de corrupção, ficariam concentrados nas cabeças de um outro poder, até desaparecerem por completo; e, por trás disso tudo, a vida e os negócios seguindo normalmente.

E esse é o ponto em que nos encontramos hoje.

Para encerrar

Mais un état pré-révolutionnaire, voilà ce qui paraît le type même de l’état psycho-social à étudier avec l’hypothèse que nous présentons ici; un état pré-révolutionnaire, un état de sursaturation, c’est celui où un événement est tout prêt à se produire, où une structure est toute prête à jaillir; il suffit que le germe structural apparaisse et parfois le hasard peut produire l’équivalent du germe structural (…)

Gilbert Simondon

Em 2013, comparei as “jornadas de junho” ao processo revolucionário interrompido de 1848 na Europa. Era por causa dessa comparação que o texto continha a palavra “derrota” no título. Assim como em 1848, sucederam-se ondas de manifestações de diferentes matizes teóricos e sociais. Depois, na França, na Alemanha, na Hungria e na Itália, governos conservadores ascenderam ao poder e nele se mantiveram por um bom tempo. Mesmo assim, em todos esses países, as décadas seguintes foram marcadas por mudanças legislativas e culturais que tornaram as sociedades, pouco a pouco, mais abertas e permeáveis às reivindicações da sociedade, notadamente das classes operárias que se organizavam em sindicatos e partidos cada vez mais estruturados e eficazes. Grande parte das pautas revolucionárias daquela época se tornaram senso comum no século seguinte. Ironicamente, hoje em dia a pessoa que se descreve como conservadora é aquela que diz defender com unhas e dentes boa parte daquelas pautas, sob o nome de “valores ocidentais”, mal sabendo quanta gente sucumbiu para que o tal Ocidente adotasse esses valores.

Derrota no combate sistêmico, vitória na cultura social? É disso que se trata? De certa forma, sim, embora a vitória cultural não tenha sido tão clara e incontestável quanto a derrota das revoluções. Mas o que daí podemos tirar como lição é que o mundo social e político é constituído de diversos processos, com diferentes velocidades de funcionamento, e uma multiplicidade de estruturas, com diferentes graus de solidez. Na interação entre esses processos e essas estruturas, veremos a história caminhar para um lado ou para outro dependendo do ponto do qual olhamos. Às vezes, é preciso que uma estrutura inche violentamente antes de estourar e desmoronar, mas, por um bom tempo, só a vemos inchar. Em outros momentos, somos surpreendidos por uma sucessão de pequenos processos ocorrendo em velocidade estonteante e acreditamos que muita coisa aconteceu, quando na verdade era só energia se dissipando, enquanto os processos mais lentos, porém mais autônomos, seguem seus ciclos sem perturbações.

Estruturas que duram longos anos, décadas ou séculos, e processos que se repetem indefinidamente são aqueles que conseguem capturar os potenciais e as informações presentes no quotidiano coletivo e fazê-los adquirir sentido, garantir o funcionamento do dia-a-dia, perenizar a herança que receberam de períodos anteriores, gerações passadas, tradições aceitas. São estruturas e procedimentos perfeitamente individuados.

Mas estruturas morrem e processos desaparecem quando não conseguem mais trabalhar com os potenciais e informações que se apresentam. Quando as polarizações se alteram, quando as escalas crescem ou diminuem demais para os seus dispositivos, quando seus alicerces são sobrecarregados por novas realidades. Pense nas corporações de ofício medievais quando começou a revolução industrial; pense nos cursos de datilografia quando o computador pessoal ganhou teclados macios; pense no discurso nacionalista depois de tantas ditaduras que se apoiaram nele… essas estruturas não conseguem mais individuar-se.

Por tudo que eu disse acima, e agradeço a paciência de quem chegou até aqui, acredito que haja um processo silencioso de desindividuação das estruturas de poder no Brasil. Ou seja: existem potenciais e informações que nossas estruturas e procedimentos simplesmente não captam. Por vários motivos: o “primeiro passo” da inclusão social que, na falta dos passos seguintes, deixou potenciais à solta; o esgotamento de uma falta polaridade que fazia parecer que o eleitorado escolhe entre um partido de esquerda e um de direita, e que é assim que as coisas funcionam; o advento de tecnologias que permitem às pessoas expressarem e denunciarem aquilo tudo que, caso contrário, ficaria na sombra, desde abusos policiais até manipulações midiáticas. Some-se a isso a falência de nossas cidades inchadas, ineficientes, engarrafadas, feias e agora, pelo visto, sedentas.

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A organização de novos movimentos sociais, embora pequenos, implica uma novidade interessante, cujo contrapeso é a virulência do discurso de uma nova direita cuja principal característica é a desconexão com uma filosofia conservadora articulada. Em paralelo a isso, um enorme contingente de opiniões se situa completamente do lado de fora das narrativas com maior reverberação. Esses também são potenciais soltos, desindividuados. No meio disso, as forças políticas vinculadas à dominação patrimonialista testam os limites da tolerância social: mas esses limites existem, e é justamente nos limites, nas membranas, nas soleiras, que as grandes travessias podem acontecer.

Há tempos não chegamos a uma encruzilhada tão nebulosa, com tantas estradas a escolher e tanta gente disputando a hegemonia do discurso. Tudo isso, claro, de maneira ainda muito desorganizada e, portanto, indiscernível. Mas excitante, para quem olha com algum distanciamento. Depois, lembramos que é a nossa própria vida que está envolvida no processo, perdemos o distanciamento e começamos a sentir um certo pavor. Mas não faz mal: o pavor paralisa por um tempo, mas depois também pode se revelar um tremendo motor para a ação. Resta saber quanta energia está disponível para a ação, e para qual ação.


NOTAS

1Não vou desenvolver aqui essa idéia, mas acho que o pessoal está olhando na direção errada ao focar na referência da ditadura para pensar o conservadorismo brasileiro de hoje. Poderia ser mais frutífero pensar no tipo de país que tínhamos no tempo dos cafezais e dos governadores.

2Vou continuar usando essa sigla até o fim. “Democrata” é uma denominação muito séria para ser usada por qualquer um.

3Lista não exaustiva.

4Embora o tema torne o texto ainda mais longo do que já seria e embora eu preferisse falar só do Brasil, já estou certo de que a primeira objeção que me fariam diria respeito a isso.

5Lembrei agora dos tucanos dizendo e repetindo que o PT não tem projeto de país, só de poder, o que de uns tempos para cá se tornou uma triste verdade… mesmo assim, é curioso ouvir isso dos tucanos, cujo projeto de país é entregar a gestão das contas nacionais para a PUC e o resto para os herdeiros políticos de ACM.

6Sei que estou sendo injusto com o período da redemocratização. Mas vamos convir que, primeiro, é um período bastante curto e, segundo, mesmo nesse período a mobilização social acabou encontrando um inimigo à altura na figura do Centrão…

7 Uma curiosidade interessante e talvez também crucial é a diferença de expressão desse apartidarismo quando vem dos movimentos sociais de esquerda (MPL, MTST e outros) ou de direita (o pessoal do dia 15, pra resumir). À esquerda, os apartidários costumam se dizer dispostos a dialogar e se associar com partidos (de esquerda, geralmente nanicos). À direita, afirmam rejeitar qualquer associação, mesmo quando se sabe que há membros de importantes partidos conservadores imiscuídos ali.

8 Conservador no sentido abstrato da teoria econômica e campos afins; no sentido concreto do conservadorismo brasileiro, o que não falta são partidos conservadores…

9Aqui está a origem do já célebre conceito de peemedebismo de Marcos Nobre, que muita gente anda interpretando como referência direta e única ao PMDB. Mas o partido em questão figura aqui como paradigma, e seu nome trabalha como metonímia do sistema como um todo. Talvez a denominação que o autor escolheu para seu conceito se preste a essa confusão, mas agora é tarde.

10 A frase é atribuída por Joaquim Nabuco ao político pernambucano Holanda Cavalcanti, que até agora não consegui descobrir se era saquarema ou luzia. (Só sei que era visconde.)

11 Costumam atribuir a Fernando Henrique Cardoso uma frase, pronunciada antes mesmo de tornar-se presidente, segundo a qual o Brasil podia se considerar feliz por finalmente ter dois partidos programáticos importantes (PSDB e PT). Não sei se ele realmente disse isso, mas é interessante ver como, de lá para cá, isso deixou de ser verdade quase completamente para o PSDB e em larguíssima medida para o PT. Exigências de sobrevivência política? Expressão de preguiça? Corrupção?

12 No caso da polícia, em particular, essa atuação fora-da-lei tem um papel preciso, que, por sinal, lembra vagamente as teorias de Agamben sobre o homo sacer.

13 O mesmo pode ser dito do apoio explícito de grandes órgãos de imprensa, muitos deles tão suspeitos de corrupção quanto a CBF, que chegaram a oferecer roteiros dos protestos, anunciaram de antemão uma cobertura intensiva e, na segunda-feira, nos brindaram com pelo menos uma capa de diário que entrará para a história como retrato da infâmia.

14Uso essa expressão porque Faoro, seguindo a tradição historiográfica portuguesa, deixa bem claro que essas relações entre comerciantes e monarquia eram de caráter já capitalista, e não feudal, sistema que, em sua interpretação, Portugal nunca conheceu. A propósito, Faoro insiste nesse ponto para criticar as interpretações marxistizantes da colonização brasileira, que pressupõem as etapas históricas descritas por Marx, inaplicáveis no nosso caso.

15É curioso como essa descrição de um sistema político rígido e impermeável à organização da sociedade faz pensar na Alemanha imperial dos tempos de Bismarck! O que talvez diferencie uma da outra é que, no caso alemão, a impermeabilidade do sistema foi sendo roída constantemente ao longo do século XIX e provavelmente teria caído de vez, não fosse a guerra.

16Daí a força de figuras como Eduardo Cunha, que emergem ainda mais fortes quando o sistema tem uma crise como a atual.

17E essa narrativa prossegue: “o povo” é apartidário, “o povo” está cansado “de tanta corrupção”, “o povo” já não acredita mais no PT e assim por diante. Acho que desde a queda do Muro de Berlim não se fala tanto nessa categoria de “povo”, principalmente à direita do espectro político.

18Ou seja, desse devir histórico que chamamos de Brasil.

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17 comentários sobre “O impasse e os impasses

  1. Bruno Alvaro disse:

    Texto que, penso eu, deveria estar numa revista séria (não que o espaço aqui não o seja). Digo isso, pois apesar de leitura ter sido leve, senti um bom toque daquelas boas reflexões ensaísticas (e interprete “ensaio” no sentido de liberdade das amarras acadêmicas – normas abnteíticas e afins) que permeavam revistas acadêmicas dos anos 50 e 60 – ou um pouco antes. Mais ou menos, não comparando aqui, locus onde Buarque de Holanda, Cândido, etc, etc. Até mesmo os jornais eram mais sérios. Acho que foi um dos teus textos mais longos que li aqui, se não o mais longo, não sei. Mais um dos mais coerentes, inclusive, é interessante encontrar essa coerência na sua escrita acadêmico-ensaística. Sinto falta disso rolando no meio acadêmico ou pseudo-acadêmico. Vejo muitas vezes – e já leio um bom tempo aqui – um coerência de pensamento, quase – palavra minha, ok? – um projeto intelectual muito bem conduzido, mesmo que em constante mudança, o que é maravilhoso, pois se as ideias não mudam é o diabo! Mas, como no cerne da coisa – das ideias – é sempre muito coerente no teu caso. Achei o texto simplesmente ou absurdamente brilhante.

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  2. Excelente o texto. O único ponto que me deixa com uma pulga atrás da orelha em relação ao seu relativo otimismo, traçado em analogia histórica com 1848, é a folga drasticamente menor para que as contradições sistêmicas se resolvam pela via da expansão (em suma, pela via tradicional do capitalismo), o que de certa forma, ou pelo menos em perspectiva histórica, parece ter permitido que esses ganhos culturais que você sugere se acumulassem sem necessariamente comprometer a perspectiva de reorganização das forças de produção. Enfim, me pergunto até que ponto isso não nos coloca num estado análogo ao de uma panela de pressão – cujos contornos são conhecidos, e vão desde a colonização total do globo e do futuro (na forma de crédito) até o advento do antropoceno – no qual nem mesmo esses ganhos culturais talvez já não tenham muito espaço para se desenvolver sem provocar instabilidades constantes. Mas pode ser só meu pessimismo patológico mesmo…

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    • Obrigado, Sergio, por replicar o comentário do Facebook cá no próprio blog. Segue a cópia da resposta que coloquei lá:

      “Entendo sua objeção, Sergio; aliás, se não for pedir demais, gostaria de vê-la no próprio blog, onde ela durará além do que permitir Zuckerberg… Em todo caso, da perspectiva que estou olhando, que é descaradamente roubada de Simondon, exatamente esse canal mais estreito de transmissão é que cria uma exigência maior de transformações que não se limitem ao meramente cultural. Isso porque o nível das tensões é muito mais amplificado, ou seja, as estruturas tais como existem têm menos margem para reconstituir-se. Por outro lado, falando assim, parece que estamos numa perspectiva mundial, enquanto o escopo do texto é bem mais limitado, olhando só pro Brasil, onde, com efeito, as perspectivas parecem dar menos abertura para reinvenções…”

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  3. Diego, algumas coisas sobre teu texto. Me responda se e quando puder…

    Olha, nada melhor que no meio da confusão crescer a perspectiva que foi o que fizeste, olhar de mais longe. Daí que pegar o nosso patrimonialismo estrutural explica muita coisa das rupturas adiadas/irrealizadas n vezes. Mas aí duas coisas. A primeira é ver não só de mais longe no tempo como mais largo no espaço. Viste esse vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=3uahtbH5FmM)? Ali os cientistas políticos falam dos governos recentes das esquerdas “canibais” (Venezuela, Bolíica e Equador) e “vegetarianos” (Argentina, Uruguay e Brasil). Justando as duas coisas, eu pergunto, o que separa os patrimonialismo presentes em ambos e em ambos dificultadores de suas missões mais ou menos reformadoras/revolucionárias? Não sou entendida, e me atenho mais ao Brasil, mas acho que três coisas: i) aqui, a despeito da versão oficial encobrir os momentos dramáticos e mesmo sangrentos dos conflitos históricos que tivemos, nunca tivemos mesmo uma ruptura sangrenta, as mudanças foram sempre feitas desde cima (independência, república, e mesmo recentemente a entrada na globalização neoliberal); ii) lá a polarização é secular e visível, vê-se na cara das pessoas (no biotipo mais que só nas cores) e nos corações e mentes – há claramente os europeus e os ameríndios (veja como somos ímpares, na Argentina e Uruguay, do nosso grupo, prepondera o europeu, só nós mesmos criamos outra coisa); iii) aqui houve uma diversificação produtiva muito maior em torno da coisa meramente agro-mineral exportadora.

    Essa comparacão tem tudo a ver – porque os “canibais” conseguiram fazer mudanças institucionais sérias (assembléias constituintes, reformas no judiciário e nas leis de meios) e os “vegetarianos” não? Por que especificamente o PT não encarou? Não acho que as reflexões até aqui (como o texto da Eliane Brum e outras tantas) avancem quando apontam o óbvio – o PT nos traiu, traiu sua missão, seu próprio programa… Ora, o PT só virou governo porque traiu, traiu primeiro! A ruptura deveria ter sido feita lá no Lula 1, não no Dilma 3! (Como o Vargas ou o Jango radicalizando na hora derradeira, isso só a fez vir mais rápido…). Tudo bem que ele podia ter fingido que traía a nós e ter traído depois o pacto que fez com as elites. Mas se não foi assim não deve ser simplesmente um caso de falta de caráter dele, mas uma avaliação de que as nossas massas estavam ainda demasiado em acordo com as instituições e preferissem a ordem conhecida que jogar-se em “aventuras” (palavra bem em voga à época). Errou Lula e o PT? Tendo feito a ruptura e suscitado esta reações nacionais e internacionais (que isso podemos dizer seriam de muito maior monta que as que ocorrem com os nossos colegas de continente) sairiam as massas às ruas, e isso seria melhor ou pior? Jamais, saberemos…

    Então, mas isso é o que pode e deve ser pensado nesse teu ponto estrutura/ individuação. O que acontece que a nossa estrutura incha e desincha sem estourar? As nossas estruturas vem sabendo “capturar os potenciais e as informações presentes no quotidiano coletivo e fazê-los adquirir sentido” etc? Acho que sim, por isso permitiu-se/viabilizou-se um Lula. Mas agora elas tremem, não entendem as ruas, não captam mais e dão sentido aos “potenciais” que crescem justo com a fase anterior. Ok, mas é o pior momento pra ruptura. Se esta se faz, se faz sem sentido ou por algum que ganhe no grito (seja esse mais radical revolucionário ou retrógrado), faz um estrago danado e nem vinga ao final. Você também fala em limites, mas não diz quais, onde… Não vejo nada muito parecido com teus exemplos (corporações de ofício, cursos de datilografia…) Vejo o fim de certas tolerâncias (com o assassinato do preto e pobre que tanto dói nas vilas e morros e com o político ladrão que tanto dóis no pagador de impostos). Mas no social mais amplo eu vejo o oposto de limites, vejo o início de uma situação nova (e nesse caso bem podemos chamar de processo de desindividuação em andamento).

    Pra mim junho/13 só fez mostrar pra todo mundo – algo que eu já via na sala de aula mas que, insisto, tá no início! – que é a convivência/enfrentamento cara a cara das bases da nossa população em situação de igualdade. Na sala de aula os novos alunos (das cotas e dos créditos) estão ali de frente com os velhos (que se dão conta que mesmo tendo de ir pra faculdade de ônibus junto com aqueles são a nossa camada superior, mesmo sem ser elite, como você bem disse). Numa viagem de um mês ao interior do nordeste que fiz há 4 anos atrás (fazendo couchsurfing em pleno agreste) pude ver pequenos empresários, produtores rurais, culturais, etc que não cabem em nenhum dos esquemas analíticos (nem nova classe média, nem apenas novos trabalhadores…)

    Então, fico pensando que o segredo é o tipo de degradação institucional que a gente tenha. Ela tem de ser, mas não pode ser rápida (a ponto de não dar tempo de construir instituições novas) e passar do ponto. O risco agora é justo passar do ponto, o que só interessa aquele patrimonialismo que resiste e insiste e que cresce na crise. Colocar gente na rua (ainda mais junto com o pessoal não de todo do mal, óbvio!, do dia 15 – como alguns amigos andam propagando) é sacanagem com todos (que ali na hora vai dar certo um “nós e eles” que se der em pancadaria aí sim é a pedra de toque que faltava). O que nós devíamos estar fazendo é construindo instituições paralelas (é isso que a crise propiciou na Europa e deu no Podemos e Syriza; experimentando coisas em pequena escala que vamos querer fazer depois).

    Enfim, a corporação de ofício e o curso de datilografia só saem do lugar pressionados pelo novo já insurgente.

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  4. Delair disse:

    Diego, uma coisa que me ocorre.Boa parte das posições críticas ao sistema capitalista moderno tendem a atribuir uma predominância da visão economicista sobre a política (cálculos, eficiência, crescimento a qualquer custo etc). Se não interpretei tão errado, no teu texto, o caso brasileiro, essa equação se inverte, é um problema político. Há qualquer coisa de muito confuso nessa relação política x economia. Tu interpreta também na maior parte do mundo um problema de fundo político? (uma política que submete a economia ou o quê?)

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    • Olá Delair, obrigado pelo comentário. Você tocou num ponto importantíssimo! Por sinal, hoje mesmo recebi um chamado para uma discussão sobre a noção de que existiria uma esfera econômica autônoma, por oposição à idéia de que aquilo que chamamos de econômico seria a hipostasia de um aspecto da vida em comum…

      Em todo caso, você chamou bem a atenção para a visão (tendendo ao anti-capitalismo) de que existe um “imperialismo economicista” no mundo contemporâneo, seja na academia, seja na formulação de políticas públicas. Do outro lado, existe todo um séquito (ultra-capitalista) que considera que a teoria (micro-)econômica descobriu a verdade profunda do ser humano e todo o resto é interferência nessa realidade profunda… Por sinal, outro dia entrevistei um sujeito que me veio com essa frase genial sobre Friedrich Hayek e Karl Polanyi: “Hayek queria proteger os mercados das pessoas… Polanyi queria proteger as pessoas dos mercados…”

      Acho que são duas visões que tomam como ponto de partida aquilo que deveriam ser extremos do fenômeno: a vida coletiva se organiza segundo vários procedimentos fixados, muitas vezes formalizados, às vezes não: da moral à religião, da ética à política, da economia à linguagem. (Daí, por exemplo, a fraqueza de frases como a de Engels, para quem “em última instância” o político é determinado pelo econômico…) O que quero dizer é que “o mercado”, assim, em si, não existe, é uma abstração, e “o Estado”, idem. Ambos agenciam as possibilidades oferecidas pelas relações de poder, a relação com o mundo físico (natural), o estado da arte da tecnologia, a herança cultural, o sistema legal e assim por diante. Em geral, quem toma o “mercado” e o “Estado” como entidades reais o faz como fundamento de sua própria militância, não que isso seja por si só errado ou mau, mas continua sendo uma hipostasia.

      É por isso que não vejo muita conseqüência em discutir se o problema do Brasil está no nível da Selic, no câmbio ou “no tamanho do Estado”… tudo isso reflete interesses encastelados, a organização fundiária, a relação com o resto do mundo, notadamente as principais potências e assim por diante. O problema econômico é político na medida em que entendemos “político” como “pertinente à estruturação da vida comum”…

      Quanto ao resto do mundo, o mesmo vale, embora com as particularidades de cada lugar. No plano global, então, nem se fale. Coisas como o TTP ou o tratado transatlântico são mais políticos ou mais econômicos? Responder por um ou por outro sempre conduzirá ao erro: esses tratados não dizem respeito só a fluxos de comércio, mas também à determinação de poderes supra-estatais (corporações podendo processar governos quando seus interesses são contrariados, por exemplo). Qual é a fronteira entre uma coisa e outra? Pense na zona do euro, também: outro dia veio a público uma carta de 2011 do BCE para o governo espanhol dizendo exatamente que mudanças legislativas eles deveriam fazer. Político ou econômico? Cultural ou legal? Ético ou religioso?

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  5. Delair disse:

    Obrigado, Diego. Escrevi o comentário com o Bauman e o Tony Judt em mente, eles costumam apontar essa espécie de subordinação excessiva do Estado (e da sociedade que assimila o ethos – na falta de palavra melhor – utilitarista) ao economicismo, inclusive como algo que implicaria num afrouxamento do debate político em si mesmo (da coisa pública). É uma questão nebulosa na minha cabeça e a tua colocação sobre hipostasia veio a lançar mais dúvidas ainda.

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    • É que, como diria o Chacrinha, eu não vim pra explicar, eu vim pra confundir (ou algo assim)… Acho que o que esses autores, e tantos outros, apontam, é a mentalidade que se instalou em que tudo se explica pela economia, tudo se faz em nome da economia e tudo se interpreta à luz da economia, mas entendida como uma esfera pura, abstrata (hipostasiada, na verdade), à qual a realidade deve se ajustar. Lendo assim, dá pra explicar muitos dos impasses do mundo contemporâneo!

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  6. Delair disse:

    Fiquei pensando em quem faria realmente uma abordagem se hipostasiar (ou hipostasiando num grau menor). Em algum momento, em geral, mercado e Estado surgem quase como entes quase materiais, o que é muito esquisito. Quem tu me sugeriria como exemplo (além do teu próprio texto)? Onde encontro um método “anti-hipostasiador”?

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    • Gosto muito da perspectiva de Polanyi em A Grande Transformação. Hoje, tem gente tentando pensar fora desse quadro, como Bruno Latour (com a questão dos modos de existência), Bernard Stiegler, Theodore Schatzki e tal. Uma perspectiva diferente, mas interessante, está na antropologia de Keith Hart e, para uma versão mais radical, David Graeber. Juntando essa maçaroca toda, talvez a gente chegue em algo bem interessante…

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