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Homenagem pessoal a Doug Williams

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Este texto foi publicado originalmente no Facebook, mas como a fugacidade daquele ambiente controlado e sufocante de “rede social” me exaspera, acho que vale transferir para cá. Afinal, trata daquele que provavelmente foi o primeiro ídolo que tive na vida.

Eis a história: falou-se muito de futebol americano na última semana, com as finais da AFC e da NFC – que não acompanhei, porque há muito perdi o interesse por esse esporte. Mas esse interesse todo acabou voltando de supetão, mais ou menos como as memórias do herói de Proust, quando surgiu a questão dos quarterbacks negros. Essa insuspeitada madeleine me trouxe imediatamente à mente a figura de Doug Williams, com sua história fabulosa que, certo dia, me levou das lágrimas incontroláveis – ora bolas, eu tinha seis anos – aos pinotes descontrolados. Tudo isso em pouco mais de uma hora.

Pois bem: Doug Williams foi o primeiro quarterback negro a chegar ao Super Bowl. E com dezoito jogadas instalou-se definitivamente na mitologia do “football”.

Sobre o Jogo

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Era janeiro de 1988 e o Super Bowl XXII (fechando a temporada de 1987) seria disputado em San Diego entre dois times formidáveis. De um lado, o Denver Broncos, que tinha perdido o SB do ano anterior para o New York Giants e vinha com sangue nos olhos. Por sinal, talvez os Broncos sejam o maior vice-campeão da história do SB (não verifiquei, estou chutando), deixando o time de Eurico Miranda para trás no ranking de maiores vices do mundo (num desconfortável segundo lugar, o que não deixa de ser um estranho paradoxo: segundo dentre os segundos…).

Ainda assim, como eu disse, era um time formidável. Alguns de seus jogadores tinham batido recordes na temporada, como os wide receivers Ricky Nattiel e Vance Johnson e o Running Back Gene Lang. Comandada por Joe Collier, a defesa daquele time era chamada de “Orange Crush” e se especializava em mandar quarterbacks para o chão.

Mas a jóia da coroa era mesmo o quarterback: o extraordinário John Elway, protótipo do “redneck dixie buck”, marrento e esnobe como tantos outros gênios do esporte (e vilões de Hollywood… Ele fazia pensar um pouco no Val Kilmer de Top Gun, aliás).

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Do outro lado, o time do Washington Redskins, comandado por um verdadeiro gênio, o técnico Joe Gibbs, que triunfou em nada menos que três Super Bowls – até hoje, os Redskins só ganharam com ele. A lenda Art Monk, o rolo compressor, o encouraçado vivo, provavelmente até hoje o maior wide receiver da história do esporte, estava em má fase (e nesse SB, de fato, mal apareceu).

E uma curiosidade: Monk é primo de terceiro grau de outro grande gênio, o pianista Thelonious Monk.

Art Monk

Mas alguns jovens promissores tinham mostrado seu valor ao longo da temporada: Gary Clark, Ricky Sanders, Kelvin Bryant.

O grande problema estava justamente na posição de quarterback. Não muito satisfeito com Jay Schroeder, jogador de enorme qualidade, mas incapaz de inspirar um time à vitória, sobretudo em momentos difíceis, Gibbs tentava preparar seu reserva para substituí-lo, pouco a pouco. Tratava-se de um jogador mais experiente, mas que não tinha conseguido se firmar e enfrentava o nariz torcido para QBs negros, considerados “intelectualmente insuficientes” para a função.

Esse era Doug Williams, vindo de uma carreira meio apagada no Tampa Bay e esperando sua vez em Washington.

Para resumir: de um lado, a fina flor dos WASP no esporte. Do outro, um pobre-diabo nascido na Louisiana dos anos 50 (o pré-jogo da CBS mostrou o casebre em que ele nasceu, mas não consegui mais achar esse video no Youtube. Sorte que tenho em DVD.)

O Gesto de Schroeder

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Sem espaço – Schroeder não deixaria nunca alguém lhe tomar o lugar –, Williams quase foi transferido no início da temporada para os Oakland Raiders [naquele tempo, na verdade, sediados em Los Angeles]. Mas quis o destino que o jogador tivesse coisas melhores a fazer na Califórnia… Gibbs precisava de um reserva que fosse bom e melou a transação. O jogador ficou decepcionado, pensando que ficaria no banco para sempre. Teve de engolir a decepção.

Sobretudo porque, no início da temporada de 1987, Williams ainda remoía um episódio humilhante do ano anterior, quando, no meio de uma terrível derrota, Schroeder se machucou e seu reserva imediato se preparou para entrar em campo. Vendo a aproximação do QB negro, Schroeder (outro típico WASP) simplesmente o dispensou com um gesto de mão. (A cena aparece nos vídeos abaixo.)

Mas esse gesto, ah, esse gesto, seria tão significativo quanto a cusparada na bola entoada por Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas…

Ainda insatisfeito com Schroeder, Gibbs resolveu tentar com Williams. E seu desempenho foi bom. Nada de mais: só bom. Bom o suficiente para se tornar o primeiro QB negro a jogar um Super Bowl.

Nas entrevistas, ao longo da semana que anteceu a partida, todas as perguntas da mídia diziam a respeito à cor da sua pele, a ponto de deixar o QB irritado. A clássica não poderia faltar: “How long have you been a black quarterback?” E ele respondeu: “desde que me saí do esporte universitário. Até então, eu era só o quarterback de Grambling State.”

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John Elway

O primeiro lance em San Diego é um desastre para os Skins: os Broncos tomam a bola depois de um erro deplorável. No lance seguinte, John Elway, com toda sua marra e genialidade, faz “apenas” este lançamento:

Primeiro recorde batido nesse jogo: o touchdown mais rápido da história dos Super Bowls. No lance seguinte, mais um recorde: Elway foi o primeiro QB a receber um lançamento no SB.

Ao longo de todo o primeiro quarter, o massacre é patente e inquestionável. Os Redskins não conseguem completar nenhuma jogada. Nada. Nenhuma. O “Orange Crush” passeia sobre o ataque de D.C.

Ao final, os Broncos ainda fazem um field goal – 10 a 0.

Nunca algum time tinha virado um placar tão adverso desde que as conferências passaram a se enfrentar, 22 anos antes.

Um Joelho e a História

Pra tornar o quadro ainda mais trágico, no meio do primeiro quarter, Doug Williams recebeu uma bola, escorregou e torceu o joelho. Na confusão, os juízes tiveram dificuldade em decidir com que time a bola tinha ficado. Decidiram por Washington, mantendo o time vivo, embora arrasado.

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Mas a grande dúvida era: o QB vai conseguir ficar em campo? Se não ficasse, seria um desastre não só para o time dos Redskins, mas para Doug Williams pessoalmente e para todos os jogadores negros que ainda lutavam duramente por espaço no futebol americano (cf. documentário lincado abaixo).

Jay Schroeder, debaixo de suas longas madeixas louras, já se preparava para entrar em campo. Mas um minuto depois já estava fora: Doug Williams não aceitaria outra humilhação.

“The Quarter”

Paro de contar a história para que o leitor a veja com os próprios olhos. O que veio a seguir (pra usar a linguagem dos memes) ficou conhecido como “The Quarter”… ou então, “The Eighteen Plays”. Foram nada menos que 19 recordes batidos. Quase todos os TDs desse jogo foram de uma beleza plástica emocionante e, para quem gosta de acompanhar o funcionamento de uma equipe, tanto o ataque quanto a defesa foram perfeitos.

Para seu deleite (e em seguida, leia este link):

Outro vídeo:

Este documentário conta a história de Doug Williams a partir do min. 27. Bem interessante:

Aqui, um depoimento bacana:

E uma série de três episódios sobre as “18 plays” feita pela própria franquia dos Redskins. Mostra jogada por jogada, explicadinho, tintim por tintim. Para assistir, tem que passar direto pelas partes “contemporâneas”, mas vale a pena. Tinha uma versão mais condensada, mas acho que tiraram do Youtube:

 

Post scriptum sobre o WR atual

Já não acompanho o esporte faz tempo, mas sei que os Redskins de hoje não são nem a sombra do que o time foi de 1980 a 1992. Mas fico triste ao acompanhar a controvérsia em torno do nome: segundo consta, “redskins” não é considerado uma homenagem às populações indígenas, mas um termo depreciativo. Há uma campanha forte para que o time mude o nome que carrega desde a fundação, ainda em Boston, em 1932. Não vou entrar no mérito da questão, porque 1) estou completamente afastado; 2) até ser informado da campanha, não tinha idéia de que o termo era depreciativo, mas se os próprios indígenas dizem que é, então é (leio que também há controvérsia a esse respeito, então calo); e 3) cada país com histórico de genocídio indígena tem que lutar à sua própria maneira – aliás, nessa, nós é que estamos muito mal.

Mas tem um comentário que eu gostaria de fazer a respeito: o que me entristece em tudo isso é ver o nome dos Redskins associado a racismo, tornado objeto de desconfiança e desprezo. Preferiria mil vezes que a imagem do time estivesse associada a esse momento tão oposto que foi o Super Bowl XXII: o de afirmação contra o racismo, a prova cabal de que o quarterback negro, contra toda a pressão, assombrará os espectadores, pairando acima de adversários até então prepotentes, mas obrigados a reconhecer a genialidade com que ele pensa o jogo. Esse é que é o Washington Redskins da minha memória.

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2 comentários sobre “Homenagem pessoal a Doug Williams

  1. Bruno Alvaro disse:

    Quando li na clausura, digo, no Facebook, fiquei me perguntando, por que ele não publica no Blog? rs
    Acho que vale uma reflexão, até mesmo quantitativa, mais que qualitativa (não que tenha sido este o teu caso) da presença de QB negros nos últimos anos. Confesso que não saberia a estatística que, provavelmente, já existe. Tá aí uma investigação bacana pra se fazer…

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