Desde que me instalei de novo em São Paulo, estive duas ou três vezes no Cidão, minúsculo bar de Pinheiros onde, às quintas, eu costumava ouvir tocar João Macacão e seu grupo. Claro, também ia em outros dias e vivi ali bons momentos (maus também). Mas João, para meu desgosto, não toca mais lá. Em seu lugar, músicos que não conheço e não me cumprimentam à entrada. O lugar que eu adorava se tornou hostil. Assim mesmo, num estalo.
O tempo não passa, ele despenca das alturas.
Outro ponto meu na cidade, em que fui parar guiado pela música, era um restaurante da Wisard. Estava em outro lugar tomando café, quando ouvi um bandolim à distância. Era uma execução virtuosa, realmente extraordinária, ágil e veloz, sem uma única nota fora do lugar. Paguei a conta, puxei Nicole e disse: “vamos ver isso!” (com certeza foi em 2004, ano em que a conheci).
Viramos a esquina e lá estava a roda de choro, composta por sexagenários e provavelmente um ou dois septuagenários. Entre eles, um imberbe bandolinista, comovente em sua elegância de camisa abotoada até o gogó. Seu nome era Danilo Brito. Poucos meses depois, o rapaz ganhou o prêmio Visa. Onde andará?
Estive também nesse restaurante há algumas semanas. Nada de sexagenários. Nem mesmo a cantora (Vânia era seu nome) encontrei. Outro rapaz apresentava seu voz-e-violão, honesto, mas sem brilho especial. Tomamos qualquer coisa e partimos, numa certa amargura por descobrir que mais um lugar me recebia como a um estranho. Sem falar nos preços proibitivos, daqueles que berram: “chispa! Fora daqui!”. A cidade, pelo menos no que me diz respeito, vai encolhendo.
Se a volta é mesmo como morrer e renascer, a visita aos lugares do passado é como planar, espectral, em volta do próprio espólio. Os portos seguros de outros tempos sofrem uma espécie de metamorfose. Passam a ser, da noite para o dia, templos da memória, esfumaçados, cheirando a turíbulo.
Mergulhar em recordações é se render às artimanhas da memória. E, creia-me, essa é nossa porção mais ardilosa. Sonhar é menos enganoso que lembrar. Só raramente se toma um sonho por verdade, mas acreditamos quase sempre nas figuras do passado. O que nos escapa é que sonho e lembrança saltam de um mesmo e único embrião: as profundezas. Nessas trevas cintilantes (há centelhas nas trevas e seu nome é vida), pode até haver um ou outro princípio, mas garanto que ele não é de realidade. Talvez alguém seja bestial a tal ponto que essa máxima não valha, mas, para o resto de nós, primeiro se imagina, ali, naquelas centelhas, e só depois se vive. Olhando o mundo, tocando-o, degustando-o, para decidir sem grande certeza (a grande certeza está reservada aos bestiais) se o imaginado é digno ou não da confiança de ser considerado real.
Pense nas rotinas de outras épocas. Freqüentar tal lugar, tais pessoas, presenciar esse ou aquele evento, sofrer ou se regozijar com determinados encontros, ditos, relações. Mas rotina mesmo é calçar os sapatos, escovar os dentes, engolir um café, apertar o nó da gravata e se jogar na vida. A vidinha, aquela que não entra no cômputo dos hábitos e não vira papo de bar. Quantas vezes, verdadeiras, de carne e osso, viveram-se aquelas deliciosas, inesquecíveis, imortais passagens a que mais tarde vamos nos referir com o “sempre”?
Acontece que a memória é a ferramenta que transforma a vida numa história a contar para si próprio. Ela também tem suas centelhas e joga fachos de luz cá e lá. Amplia o que recebe a claridade e atira o resto nas profundezas, onde só lhe restará pulsar, à espera de outra centelha ou sabe-se lá o quê. Deixamos de ser quem engolia café sem sentir o gosto para ser quem ia sempre ao Maracanã, ao chorinho da praça ou ao cineclube obscuro do porão. Por que não? Sem uma narrativa como essa, como projetar um futuro?
Quantas vezes estive no Cidão, naqueles tempos em que eu vivia sempre duro? Se é que vivia… Eu ainda não tinha passasdo pelos verdadeiros perrengues da falta de dinheiro; que noção podia ter do que é a pindaíba? No restaurante da Wisard sei bem que não estive mais que três ou quatro vezes. Duro ou não, estava acima das minhas posses. Esteja onde estiver a verdade, não posso negar ou esconder a dimensão que a memória deu às noites de João Macacão e às tardes de Vânia e Danilo na narrativa do meu passado.
É com essa dimensão que o presente tem de lidar. Órfão de meus pousos, busco outros lugares que me acolham. Não é assim que funciona. Ouço outros grupos, tomo outras cervejas (da mesma fabricante, aliás), nem o som é o mesmo, nem o sabor. Minto: o efeito é que não é o mesmo. A acolhida. Minha resposta.
Tenho ido – ou foram só duas vezes? – a outro lugar. A música é boa, na medida em que possa ser boa a música que não nos atravesse como peixeira. Estive lá no domingo, entre duas pancadas de chuva, sentado numa das piores mesas, longe do conjunto e perto do ponto de ônibus. Quando entramos, era intervalo dos tocadores. Na volta, uma voz familiar e era ele mesmo, João Macacão, com suas serestas, seus boleros, seus sambas-canção. Comprei o disco que ele estava vendendo, almocei com uma satisfação renascida. Ao final, João perguntou se tínhamos nos mudado para o Rio. Quem dera, João. Ele se lembrou de alguns dos nossos amigos e perguntou em especial por uma moça que dançava muito bem – uma argentina que arrasa na gafieira.
As formas que a memória produz têm interstícios, falhas, rachaduras. Através delas, o que se encontra não é uma verdade sobre o passado, mas alguma outra coisa. Talvez a possibilidade de contar uma outra história, o que já está bom demais. Aliás, João Macacão vai voltar a tocar no Cidão. Às quintas.
Eu passo por aqui sempre, mas mais pelo google reader. O intrigante é que a última vez que estive fora exatamente comentando o texto sobre a morte/renascimento que a mudança nos proporciona. Como lá, fui tocado novamente no ponto nevrálgico pelo texto. ou, ao menos, aquilo que eu vi como este ponto: “sonhar é menos enganoso que lembrar”. mas o sonho ainda tem o seu que de ardilosidade egóica.
obrigado e abraços
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Salve Alexandre!
Tem, sem sombra de dúvida. É por isso que eu coloquei aí: as duas coisas vêm de uma mesma origem, que são as profundezas. E mais: se confundem o tempo inteiro…
Abraço!
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Ah! o Bar do Cidão! Penso que depois que vocês deixaram o Brasil eu nunca mais voltei lá.
Ah! A Argentina que dança bem… rs
Abraços
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Tá na hora!
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