Aconteceu duas vezes. Primeiro em Copenhagen, depois em Guarulhos. O sinal: bagagem ou casaco na esteira do raio-x, olhos apertados e sobrancelha alçada na pessoa de uniforme, a exigência de separar o objeto suspeito para um exame mais próximo, com direito a luvas de borracha e tom de voz imperioso. Até segunda ordem, o viajante é um terrorista em potência ou, na melhor das hipóteses, um mísero traficante internacional.
Algo ali chamou a atenção dos “agentes de segurança” aeroportuários. São os responsáveis por evitar que a Al Qaeda risque os céus, mas também por manter constantemente vivo na consciência de cada passageiro a lembrança de que a Al Qaeda existe e a sensação de que está por todo lado. Aos olhos do poder, principalmente os funcionários mais baixos do poder, a Al Qaeda está por todo lado. Por todo lado. E, noves fora os americanos velhos de guerra, ninguém está mais seguro disso do que os dinamarqueses.
Uma palavrinha sobre os dinamarqueses.
O que terá captado o olhar treinado, experiente, infalível, implacável, dos oficiais? Dessa vez, dificilmente pode ser o soro fisiológico, que, em outra viagem, certa viajante teve a audácia de deixar para fora do plástico autorizado, dentro de sua bagagem de mão. (Nessa ocasião, a pobre moça tentou explicar que em seu país, a França, a segurança não dá bola para isso. Ouviu como resposta que os dinamarqueses “são mais sérios”, em tom sério, realmente. Rir na hora sendo imprudente, deixou-se para depois.) Não há de ser soro fisiológico, nem solução para lentes de contato, nem pasta de dente, nem leite de rosas. O viajante em questão é escolado e sempre despacha seus líquidos no aeroporto. Sem trocadilho.
Não pode ser o soro. Não pode ser o soro. Meu Deus do céu, não pode ser o soro!
Aliás, cabe mencionar que, no aeroporto de Kastrup, tanto faz se o raio-x apita ou não à passagem de um passageiro. Exige-se de cada um que suba num estradinho emborrachado, abra os braços e aceite ser apalpado com brusquidão pouco sincera por um desses agentes tão zelosos. O sujeito, talvez por estar tratando com terroristas em potencial, nem se digna em pedir que o examinado dê meia-volta para mais apalpadelas. Limita-se a indicar com o dedo o que deseja, como quem aponta a má conduta de um totó. Situação embaraçosa, direis? É claro, mas, como já expliquei, somos todos terroristas em potência ou (nas horas vagas, provavelmente) perigosos traficantes. O poder não pode ser tolerante com esse tipo de gente.
Aprovado na prova do contato direto e imediato do revistador, o viajante não entende por que fica retido, costas contra a parede do fundo, sob esgares desconfiados dos pontas-de-lança do poder, que se ocupam em examinar sua bagagem. O que eles querem? Soro não pode ser! Os líquidos foram despachados! Na mesma parede, um casal de turbante é fuzilado pelos mesmos esgares, apenas muito mais violentos. E nem tiveram direito a venda nos olhos ou último cigarro.
Corta para Guarulhos.
Entre a Escandinávia e os trópicos, uma semelhança – a esteira do raio-x – e muitas diferenças. A começar pelo idioma fluido e sonoro, contrastando com algo que pode ser descrito como uma forma organizada de tossir (é o que dizem os suecos para mangar dos dinamarqueses). Em seguida, detalhes bestas, como a camisa que não é fechada até o último botão e o fato de o agente encarregado de escarafunchar as roupas sujas dos passageiros não necessariamente contar com luvas de borracha (se isso não for motivo para adicional de insalubridade, é hora de entrar em greve). Depois, a preocupação é outra: que mané Al Qaeda, o negócio aqui é com traficante e lavagem de dinheiro.
Também é digno de nota o tom de voz, que em certos momentos chega a ser digno de conversa de bar, algo impensável para além do Atlântico. Isso não quer dizer, claro, que haja o menor espaço para dúvidas quanto a quem manda naquele ambiente. Faça isso, faça aquilo e ponto final. Não tem papo. Mas ainda é melhor do que ficar retido contra a parede, como em Kastrup.
Fuça daqui, fuça dali, nada parece ser suspeito, contrariando o alerta da máquina de raio-x. Pacientemente, embora morto de sono e fome, o viajante vai empilhando de um lado suas peças amassadas e encardidas de roupa; do outro, os livros. Um agente sênior vem se juntar ao júnior, carrancudo, estranhando a demora. O mais jovem se põe a gaguejar e suar um pouco, não quer fazer feio diante do chefe. Sem cuecas sujas, sem livros sujos, lá vai de novo a mala do viajante para a esteira. Desta vez, o raio-x não reclama.
Agente sênior para agente júnior:
– Então são os livros.
– É, são os livros.
Liberado, o viajante vai enfiando de qualquer jeito sua massa de coisas na mala. Aproveita o momento de pausa do agente júnior para lhe perguntar por que os livros apitam no raio-x.
– Não é que apitem -, explica o agente, – mas o volume do livro parece dinheiro.
E arremata:
– Como você sabe, viajante, existe um limite para os valores que podem entrar legalmente no Brasil.
O viajante parte encucado. Disse bem, o agente: os livros, no Brasil, não têm valor nenhum.
De volta à Dinamarca.
Enfim, é encontrado o primeiro objeto suspeito: Foucault. E o segundo: Deleuze. E o terceiro: Nietzsche. E o quarto: um guia turístico da capital dinamarquesa.
Foucault tem a honra de ser folheado. Deleuze é revirado. Nietzsche, mais corporal, merece que o farejem, as páginas sendo passadas agilmente diante do nariz perquisidor do agente de segurança. Nietzsche? Muito suspeito, esse elemento. O guia de Copenhagen vale apenas mais um alçar de sobrancelhas, embora seja o mais proveitoso para um homem-bomba, com seus mapas detalhados, fotografias em profusão e instruções para o transporte público.
O veredito, no típico inglês esquemático dos escandinavos:
– Well, só livros.
O tom é da mais evidente decepção. Mesmo assim, antes de desistir, ainda há tempo para mais um minutinho de carícias em Foucault. Só para se certificar.
O viajante, com toda a prudência do mundo, abandona sua posição contra a parede. Ainda tenta um pouco de empatia humana, acha que aquele é o momento de ser espirituoso, esboça um gesto tímido de aproximação com alguém que, afinal, também é filho de Deus ou algo assim.
– É como dizem! Livros podem ser muito perigosos!
Eis que o examinador arregala os olhos e enrubesce de imediato. O viajante compreende que o melhor é guardar suas coisas e sair dali o mais rápido possível. Os livros podem ser perigosos, mas a autoridade é mais.
Uma verdadeira aula sobre a cordialidade brasileira e a dureza escandinava – ainda que importe que além do tom de voz a autoridade seja tão ou até mais absoluta e intolerante. Não há equivalência entre tom e substiancia, no sentido de que o tom não altera a substância do ato, mas há mesmo assim uma questão de forma aqui que não é apenas contingente. Eu diria: não basta ser exigente ou eficiente, é preciso sê-lo de uma maneira cordial. Talvez sejam sentimentalismos de um brasileiro que vive há muito tempo longe do Brasil…
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