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Lyon, a colina do corvo

Ao contrário dos turistas potenciais ao redor do mundo, a maioria dos franceses torce o nariz acintosamente para Paris, sua tão decantada capital. Noves fora, é a mesma atitude que tende a tomar quem passa longos anos entre a Porte d’Orléans e a Porte de Clignancourt, subindo e descendo pelas alamedas anti-barricadas. Com todo seu estilo (palavra preciosa) de edifícios haussmanianos e monumentos em bronze – na verdade uma desculpa tipicamente francesa para uma homogeneidade e um monocromatismo sufocantes –, o problema é que Paris enche, com o perdão do linguajar. Aliás, de vez em quando uma dessas pessoas que querem se mostrar viajadas e versadas nos segredos do “eldorádico” Velho Mundo (contradições à parte) lança mão do seguinte argumento: “na França? Paris é perda de tempo, boa mesmo é a região tal”, e cita alguma área do Sul. Seria um argumento quase impecável, não fosse, primeiro, o fato de que a vida não é feita apenas de férias, e segundo, a curiosa coincidência de essas pessoas aparecerem por aqui todos os anos, em busca de liquidações na galeria Lafayette, sem saber que a dita loja está presente em todas as cidades com alguma relevância no país.

Entre os locais, já que são eles o tema deste texto, a rejeição à capital é generalizada e dá origem a um sem-número de piadas. Só não digo que é unânime porque a unanimidade é algo que só merece nossa desconfiança, além de ser, como denunciou Nelson Rodrigues, burra. Mas continua divertido ouvir um normando ou um provençal explicar, embevecido de orgulho, que não sabe andar em Paris, só esteve cá quando criança, ou algo assim. É um povo muito ligado a sua região. A não ser, eventualmente, quando fala com estrangeiros, situação capaz de transformar a cidade-luz num paradigma urbano universal. Só não vamos esquecer que Paris enche, repito para fixar.

Toda essa introdução foi só o jeito que encontrei para (exercitar o sarcasmo e) introduzir meus elogios a Lyon, segunda maior cidade francesa, que tem mais ou menos o tamanho de Niterói. Herdeira de Lugdunum, capital galo-romana das três Gálias, essa cidade cultiva com seriedade seu orgulho do passado glorioso. O museu da época romana é o projeto arquitetônico mais notável do lugar, o que é sempre significativo (o segundo lugar cabe a um edifício em forma de lápis…). Os dois teatros descobertos debaixo dos prédios na colina antiga foram reconstruídos e voltaram a ser usados, para grande admiração e desconforto dos espectadores. A cada verão, um festival de teatro e música leva as gentes morro acima e lhes testa os joelhos e a coluna. Enquanto isso, os lioneses persistem na sensação de manter um papel político central, ainda que a vida econômica siga a triste tendência de concentrar-se na capital: Lyon é e sempre será a verdadeira capital para o francês do sul, que treme só de pensar no céu cinzento das regiões setentrionais. O pensamento se resume na sentença de Albert Thibaudet, que reforça a tradicional noção de que a região parisiense não representa o país que conduz: “Se Paris é a capital da França, Lyon é a capital do interior.”

O orgulho é tanto que mais de um residente esnoba as populações do norte, da capital em particular. A abertura da linha de TGV em 1981, para eles, fez de Paris “quase um subúrbio” de Lyon, e não o contrário. Em todas as praças vêem-se esculturas com leões, símbolos da cidade pela semelhança fonética, e cujas versões em pelúcia se encontram para vender em todas as lojas. Sem querer ser o estraga-prazeres etimológico: o nome da cidade nada tem a ver com leões, aliás extintos da Europa antes mesmo da era imperial de Roma. “Lugdunum” vem de “Lug”, divindade celta representada no mais das vezes como um corvo (não um leão, lamento), e “dunum” é uma colina, o que faz de Lyon a “colina do corvo” – um corvo de muito bom gosto, a vista lá de cima não tem preço, a não ser o do bilhete de metrô. A propósito, não mencione a questão “leão versus corvo” para os lioneses, é claro, se não quiser perder os dentes.

O meio milhão de habitantes do município (1,7 milhão na área metropolitana) são suficientes para fazer desta a segunda maior cidade da França, sede “honorífica” de um de seus maiores bancos (Crédit Lyonnais) e centro industrial de peso, sobretudo nas indústrias mecânica, têxtil e química. Não estou mencionando esses dados industriais por diversão. Essa composição do parque industrial acabaria por sintetizar-se, ao final do século XIX, numa invenção que todos amamos: ela usa princípios químicos para fixar imagens, processos mecânicos para sincronizar a exposição do filme e, toque final, o mecanismo da máquina de costura para avançar o rolo de filme. Assim nasceu o cinema, abaixo da fumaça das fábricas. Os irmãos Lumière produziram suas primeiras imagens em movimento nas oficinas lionesas, e diversos outros pioneiros da sétima arte também eram da cidade.

Voltando à vaca fria: o centro de Lyon é uma península encastelada na confluência do Ródano com seu pequeno afluente, o Saône. Essa abundância de água confere à cidade um recorte particular, onde fazem fila os guarda-sóis dos restaurantes à beira-rio. Entre os dois cursos d’água, destacam-se as muitas praças, com menção especial para a Place des Terreaux, com a prefeitura e o lindíssimo edifício do museu de arte da cidade. Essa praça foi inteiramente reformulada pelo artista plástico Daniel Buren e pelo arquiteto Christian Drevet em 1994, o que explica as listas brancas no pavimento e a ligeira mudança de posição da impressionante fonte esculpida por Bartholdi. A Oeste, a colina de Fourvière, que é na verdade a tal colina “do corvo” onde viviam os romanos. É a cidade antiga, Vieux Lyon, região mais turística da cidade. Sobe-se por funicular a essa área semeada de ruínas e dominada pela catedral de Fourvière, cujo parapeito oferece uma vista magnífica sobre a cidade e, à distância, quando o dia está limpo, o Mont Blanc, na fronteira italiana.

Uma anedota para fazer brasileiro refletir: dizem os historiadores que a cidade antiga foi abandonada porque os governadores do Baixo Império não tinham mais condições de coibir os roubos de canos dos aquedutos que levavam a água para as fontes urbanas. Obrigados a descer até os rios para buscar o que beber, os moradores acabaram por se instalar lá embaixo, na península, e inauguraram assim a Idade Média da Provença. A cidade jamais teve a mesma importância política. O que têm com isso os brasileiros? Pois todos os dias, nas cidades brasileiras, alguém consegue roubar canos de água, cabos de eletricidade, placas de trânsito, trilhos de trem…

Anedotas historiográficas à parte, esta é sem dúvida uma pérola dentre as cidades da França, recomendável para quem quer aproveitar o país sem as coisas mais desagradáveis da capital (clima, habitantes, sujeira, trânsito, preços…). É o berço autêntico das bicicletas gratuitas que deixam os turistas encantados em Paris: os moradores as empregam de fato como meio de transporte preferencial. Nos freqüentes dias de sol entre abril e setembro, chega a ser difícil encontrar uma nos inúmeros pontos de aluguel.

Ao norte, as ladeiras de antigas construções coloridas lembram a Itália, muito mais do que a França, sem as coisas mais desagradáveis do país de Materazzo (clima, habitantes, sujeira…). De vez em quando, assoma uma senhora à janela, no autêntico estilo matrona, e ralha com algum garoto que joga futebol na rua – coisa impensável em Paris, mas bastante natural em Nápoles. Falando em futebol, os lioneses são apaixonados pelo time da cidade, o Olympique de Lyon, talvez o único time francês realmente relevante a nível europeu, junto com o outro Olympique, o de Marselha.

Para o final, o melhor: talvez esta seja a única cidade no mundo em que o Jardim Zoológico e o Jardim Botânicos ficam dentro do maior parque, uma espécie de Ibirapuera limpo e bem cuidado, e são inteiramente gratuitos. Qualquer lionês pode passar uma manhã de sábado contemplando girafas e micos, rododendros e palmeiras imperiais, entre um sorvete e uma pedalada. Coisa de quem sabe viver, eu diria. O parque da Tête d’Or, ao norte do quarteirão de negócios Part-Dieu e ao sul da sede da Interpol, parece à distância aqueles enormes parques gramados de Londres. A diferença está no tanto que se pode fazer lá dentro, seja visitar elefantes, seja alugar barcos a remo. Como diriam as dondocas brasileiras especialistas em Europa, Paris não é nada (isso é um exagero, mas enfim…), bom mesmo é o sul; que Lyon seja a demonstração, ou pelo menos um exemplo.

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7 comentários sobre “Lyon, a colina do corvo

  1. Persio disse:

    Até me deu uma pontinha de saudades.
    Uma visão bastante parcial de Lyon, eu diria. Mas faltou dizer que foi a primeira capital da França, capital gastronômica, capital do tecido e da seda (de onde a influência italiana). E a cidade que abriga a melhor boulangerie que eu conheço, com certeza uma das melhores do mundo….
    Grande abraço!

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  2. Josaphat disse:

    Estou pensando uma viagem à França aí pra frente. Vou aproveitar as dicas. Espero ter grana e tempo para conhecer as regiões que me atraem mais. Você anda sumido com o blog. Um abraço.

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  3. Rafa disse:

    E ae, Diego. Tudo certo?

    Lyon foi uma das cidades que mais me agradou na França. É uma “pequena cidade grande”, de clima agradável e gente simpática. Não é tida como um grande destino turístico, mas vale a pena conhecê-la mesmo.
    Como lá já se vão 3 anos que estou em solo brasileiro, ler esse post até me deu saudades da França – mas não de Paris, bien entendu…
    Aliás, experimentou o “coussin de Lyon”?

    Saudações do seu amigo burocrata,

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  4. Pingback: Tweets that mention Lyon, a colina do corvo | Para Ler Sem Olhar -- Topsy.com

  5. ça fait plaisir de revoir lyon… uma bela e agradavel cidade. mas, sobre paris… é sempre um prazer pegar um cinema na rue des écoles, ver um filme velho… depois de ter fuçado sebos e livrarias… (e de ter comprado belezinhas à 3 euros!)

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    • Diego Viana disse:

      Ainda mais agora que o euro está menos pela hora da morte… O Brasil é que está assustador, nada sai por menos que 20 pratas!

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      • livro usado no brasil é um assalto, novo, então… mas é o enigma de tostines: são caros porque pouco consumidos, ou pouco consumidos por serem caros demais… eu comprava livros a 2, 3, até 1 euro em paris… e ficava tão CONTENTE!!

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