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Campo ao Centro (Mudar de endereço, parte 2)

Será que todos os filhos de uma criação urbana demais sonham com uma pincelada de província? Um toque, digamos, de doçura ou leveza num tempero adstringente como é o das cidades (todos sabemos)? Seria, suponho, um desejo que nutrimos em segredo, de introduzir aquele pouco de bucolismo que faz falta mesmo ao espírito mais dinâmico.

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Verdade seja dita, há uma legião de almas que se sentem sufocadas pela selva de pedra, a tal ponto que se consomem no devaneio de uma vida campestre, cercada de gado e carroças. Mas esses vão além da medida da ilusão: se algum dia realizam seu sonho, pobres diabos, não dá um mês estão entediados, retorcendo as mãos de saudades da cidade grande. (Dirá alguém que a internet e o satélite de televisão amortecem o choque. Pois que tente… quero ver se o Youtube fala mais alto que os mugidos da madrugada!)

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Do outro lado, há os incondicionais do buzinaço, os amantes da fuligem, cosmopolitas, metropolitanos, conectados de todo tipo. Aqueles que nem concebem o prazer de estirar-se no sofá para sentir o cheiro da terra. Essas almas frenéticas que não param para nada, no máximo se deixam cair sobre um colchão, pesadas e inertes, quando se cansam de todas as exigências das Exigências exigentes. Desses espíritos de concreto, destaquemos o subgrupo dos que, bem-sucedidos nos negócios, conseguem uma sobra para adquirir casas de temporada (não valem praias badaladas como Maresias ou Cabo Frio, estamos falando de vida campestre!)

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No meio, estamos nós, os que se iludem por querer ou, pelo menos, que queríamos nos iludir. Nós que desejamos morar em vilas isoladas, onde ainda se ouvem cantar pássaros – e carros, só à distância. Nós que, ao olhar pela janela, preferiríamos dar com begônias, lírios e parreiras, onde hoje nossos apartamentos só nos oferecem viadutos, painéis e engavetamentos.

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E quanto à perspectiva oposta, isto é, a dos filhos do campo que tremem de desejo ao imaginar o dinamismo das capitais, a panóplia de distrações que esses centros oferecem? Sou obrigado a reconhecer que compreendo seu ponto. Mas só concordo enquanto eles estiverem na mesma freqüência (embora revertida) de auto-ilusão que acabo de atribuir a mim mesmo: pouco adianta querer mergulhar no quotidiano do extremo oposto, que essas águas turvas são também rasas demais.

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Tantos parágrafos, só para justificar a enorme satisfação de, no coração de uma antiga capital, numa construção erguida há não menos de duzentos anos, viver no estado mais próximo, até agora, do equilíbrio que há tempos venho acalentando. Próximo, mas longe, longe de completo (com oximoro ou sem): abro a janela e dou com um paredão, que, feio ou não, é minha única fonte de luz solar; ouço poucos pássaros, automóveis menos ainda, mas as conversas de vizinhos são como deixar ligado um rádio na sala. E assim por diante.

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Mas o que conta mais forte é poder marcar a passagem das horas pelos carrilhões da igreja de St. Paul, como certamente faziam os primeiros moradores do apartamento que, depois de tanta e tanta gente, é ocupado por minha mulher e por mim. É passar as tardes de domingo num silêncio que parece apagar a cidade que me cerca, como se os trigais ainda cobrissem os morros. É chegar perto de acreditar que, de vez em quando, o tempo desiste de escorrer, já que ninguém o reitera à minha frente, com as freadas bruscas, os berros de comércio, as sirenes ansiosas.

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Não só de móveis e lembranças se faz uma mudança, mas da reconstrução de hábitos e experiências. Neste caso, para minha maior satisfação, posso até brincar de manipular a experiência. Posso acreditar, sem sair daqui, que estou ali ou acolá, na capital ou na província, em casa ou numa propriedade de veraneio, que poderei transformar, por sua vez, em chalé das montanhas quando o inverno chegar. Se, é claro, minha imaginação seguir fortalecida até lá.

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7 comentários sobre “Campo ao Centro (Mudar de endereço, parte 2)

      • Ô meu caro! Pelo incrível que parece o sol anda meio sumido da capital sergipana, talvez, por esquecimento do Desconhecido… e a URL foi gafe minha… hehehe! Fiquei tão intertido com o texto que esqueci de fazer o que faço sempre!

        Saravá meu caro!

        Abração

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  1. Não sei a que legião pertenço. Lembro de duas ocasiões singulares.

    A primeira eu iria passar férias num lugar que não havia internet, televisão ou qualquer contato com o mundo. Eram 30 dias sem ter contato com “o mundo exterior”. A princípio senti uma falta ou saudade dos links tecnológicos, mas a “rotina” me fez esquecer por completo qual era o dia da semana, a hora, e mesmo o nome do meu país. Nem parecia que existia algo fora além daquela mata, da comida simples e da companhia de meus amigos. O “choque” da volta não foi tão grande porque ainda não trabalhava como profissional liberal, assim, quando voltei, a vida foi engatando devagar, novamente, ao ritmo comum.

    A segunda passagem, foram 3 meses, praticamente desconectado da net. Morava com minha namorada em Brasília e eu não tinha computador próprio e ficava muito incomodado de usar o dela. Aos poucos aquele que era viciado em internet quase não a usava. Utilizava tão minimamente que recebi vários interurbanos exigindo que eu olhasse meu email.

    Talvez eu seja da legião dos que se acostumam com tudo. Mas peço a Deus que eu não precise trabalhar como gari. 🙂

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