Meu amigo Germain, de que já falei algumas vezes, é um verdadeiro gentleman, pelo menos para os padrões franceses; o problema é que, para não negar a raça, eventualmente ele se põe a querer obrigar o resto do universo a se submeter à sua maneira particular de ver as coisas. É claro que esse é o tipo de coisa que, normalmente, me irritaria para além de mim. Mas quase três anos de Gália bastam para nos acostumar com todo tipo de coisa, e posso garantir que o imperialismo de Weltanschauung de Germain não é dos piores.
Nossa última rusga foi lingüística, como, aliás, a maioria dos desentendimentos que já tivemos. Mas, como sempre em se tratando de discussões com Germain, foi muito fecunda e me ajudou a expandir meu entendimento sobre coisas que vêm martelando minha cabeça há meses. Começou quando fiz um comentário breve sobre minha dificuldade em “me comunicar” em determinadas situações do dia-a-dia francês. Antes de se mostrar solidário com meu infortúnio, Germain entendeu que deveria cumprir seu dever cívico, aliás pátrio, de corrigir minha expressão.
– Não se diz “comunicar-se” em francês. Diz-se apenas “comunicar”.
Não me entenda mal: gosto muito de ser corrigido; afinal, há anos venho traduzindo o nosso lusófono “comunicar-se” para o francês e isso deve soar terrível para os ouvidos locais, mas até então ninguém ousara chamar minha atenção para o fato. O problema começou quando Germain tentou demonstrar que era tolice fazer de “comunicar” um verso pronominal, aliás, reflexivo:
– O prefixo “co”, que vem do latim, é indicativo de intersubjetividade. “Se comunicar” seria falar consigo mesmo. Isso talvez seja muito normal na sua cultura (essa é uma maneira de dizer “no seu país” que eles consideram mais educada). Aqui, é sinal de loucura.
Ao final do comentário, Germain sorria naquele sarcasmo enjoado com que os franceses tendem a se comunicar, mesmo uns com os outros. Tenho como meta pessoal conseguir responder na mesma moeda antes de voltar ao Brasil. Será um triunfo maior do que desfilar debaixo do Arco do Triunfo, coisa espantosa no tempo de Bismarck, mas que, hoje, qualquer turista pode fazer e até um cabo austríaco já fez.
Acho que, com Germain, consegui bons resultados. Perguntei-lhe:
– Germain, meu velho, se “comunicar” vem do latim e “co” indica intersubjetividade, então me diga: o que vem a ser o verbo “municare”?
Mas Germain não foi capaz de me proporcionar esse aprendizado, alegando não ser, ora bolas, um latinista.
– Não precisa ser latinista, respondi, para saber que esse verbo não existe. “Comunicar” não é “co”-“municar”, mas tornar “comum”. É esse o étimo latino que você procura, o mesmo que está em “comunidade”, “comuna” e “comunismo”. Ergo, quando comunicamos alguma coisa, é porque a tornamos comum. Passa a ser uma informação conhecida de mais de uma pessoa. Portanto, “se comunicar” significa tornar comum algo que está em si próprio, ou seja, as próprias idéias e sentimentos. É rigorosamente o mesmo princípio de “se expressar”. E se vocês se expressam, mas não se comunicam, é porque são um povo solipsista, como eu já desconfiava. (Para falar com Germain, é preciso usar palavras difíceis em profusão. E para discutir com um francês, é preciso encerrar com uma sapatada.)
Embora Germain, através de suas meias-palavras de quem não quer admitir a derrota, ter reconhecido que a razão estava do meu lado, eu não me senti satisfeito com a idéia de que nós estivéssemos “certos” e eles “errados” quanto à fidelidade etimológica para com a comunicação. Afinal, as línguas todas cometem suas infidelidades etimológicas e não há nada mais grosseiro e irritante do que querer reformar a expressão de uma comunidade lingüística segundo imposições etimológicas. Para desfazer o clima desconfortável com o amigo, resolvi continuar a brincadeira, agora com uma hipótese até plausível, mas sobretudo simpática.
Argumentei que o prefixo tão estimado de meu amigo estava, sim, presente no vocábulo comunicação, mas de maneira indireta. Afinal, em “comum” há o tal do “co”. Communis significa “aquilo que pertence a todos”, onde encontramos o “co” e o ablativo de “unus”, ou seja, aquilo que é um, mas é plural. Uma entidade coletiva, que tem sua individualidade, mas só existe enquanto pertence a mais de uma pessoa.
Aí a coisa começou a ficar interessante.
Juntos, Germain e eu percebemos que a coisa vai mais longe: comunicar, então, é o ato de fabricação dessa entidade plural. Comunicar é produzir algo que seja ao mesmo tempo uno e múltiplo, é reproduzir um pensamento ou uma sensação indefinidamente. É um gesto praticamente de manufatura ou, com os meios de que dispomos hoje, de indústria. Com a diferença de que o objeto industrial não é múltiplo como aquilo que se comunica. É individual e vendido em troca de numerário, mas não se reproduz espontaneamente, como o objeto da comunicação.
O ato comunicado não é palpável, mesmo que esteja escrito ou gravado de alguma outra maneira; o livro só comunica quando é lido; o disco, quando é escutado; o filme, quando visto. Concretamente, ele só existe dentro de cada cabeça, moldado e encaixado da maneira que for possível naquele espaço, naquele indivíduo particular que pensa ou sente aquilo que foi ou será comunicado. Mesmo assim, sua realidade, quer dizer, seu modo de existência está no espaço entre cada indivíduo, cada membro do grupo que comunica; senão, morre no esquecimento.
Mas o mais relevante é que cada um contribui ao modificar aqui e ali o comunicado, incluir versões e confrontá-las com as alheias. A comunicação é como um organismo vivo em constante evolução. É um corpo imaterial, que aceita e se alimenta de todas as mutações por que passa no tempo e no espaço.
Estranho universo, esse. E vimos, Germain e eu, como ele é central na experiência humana. E se for verdade que vivemos em plena “terceira revolução industrial”, aquela da expansão massiva dos meios de comunicação, então o que vivemos é muito mais revolucionário do que parece. A fortiori (já que tratamos tanto de latim), se a crise mundial é, de fato, a crise do esgotamento do modelo anterior, então será, necessariamente, caso de uma mudança radical da forma de vida da humanidade.
As revoluções industriais que já varreram o mundo podem ser interpretadas como quebras do paradigma de acumulação de capital (não se assuste com o vocabulário marxista; ele foi criado por Adam Smith). Mas a comunicação é outra história. Como dissemos, elas se reproduzem e multiplicam por conta própria, capital acumulado ou não. Não é à toa que empresas de comunicação baseadas em modelos de trabalho antigos estão desaparecendo ou sendo transformadas a ponto de ficar irreconhecíveis. Mas nada garante que o modelo novo será um substituto à altura. Aliás, como sempre acontece em momentos de crise e mundo de cabeça para baixo, nada garante nada.
E tudo isso porque Germain não queria se comunicar.
meu caro e talentoso amigo, genial comunicador de raciocínio, não vou meter a colher na sua briga amigável com Germain, mas te teço um imenso elogio ou talvez esse elogio possa te parecer como filosofo um xingamento, um pequeno espaço antes de emitir minha sentença, estou pasmo com sua sapiencia tão rara a ser encontrada nas gerações do presente ou será que elas se escondem com vergonha da modestia, mas tudo bem, lá vai, sou engenheiro (ex) e por ter sido bem sucedido a minha arma mais poderosa era o raciocínio lógico, passo após passo a ser pensado e levado adiante com a segurança de quem sabe o que resultará apos o outro passo até chegar ao resultado exato, como na ciência geométrica que terminava com o problema resolvido logo abaixo do resultado com o CQD
abraço
CurtirCurtir
Ah sim, o paradigma da geometria, como queríamos demonstrar, quod erat demonstrandum, o encadeamento de conseqüências lógicas a partir da qual tudo deveria ser encontrável, isto é, dedutível… mas mesmo esse desenvolvimento exaustivo da nossa capacidade de raciocínio ainda nos deixa em aporias infinitas… não é?
CurtirCurtir
Estava aqui pensando… No português, quando se diz “quero comunicar”, imediatamente pensamos em algum comunicado ou alguma nota a ser transmitida. É uma comunicação unilateral. Comunicar algo a alguém, sem esperar nenhuma comunicação na via contrária (ou não mais que um ciente). Já quando usamos de forma reflexiva, queremos uma ação em duas vias. Ou será que o francês não se importa com a repercussão da sua comunicação?
Concordo muito com a realidade mutativa da linguagem/comunicação/conhecimento. A interatividade é uma das formas mais férteis de recodificação das ideias. Mas permita-me fazer um pequeno apontamento: acho que hoje estamos vivendo um modelo novo de sociedade. Não muito tempo atrás, não ouvíamos falar em “agregar valor ao produto”, “conquistar o cliente”, etc. Se um produto era mais barato ou o custo x benefício era melhor, pouco importava o tratamento que se dava ao cliente. Além desse notório apelo emocional, vivemos num mundo de muitas cortesias no sentido mais amplo da palavra, desde amostras grátis e serviços gratuitos a uma excessiva necessidade de diálogo e informação para que qualquer coisa aconteça.
O título do post está perfeito.
CurtirCurtir
É porque comunicar é um verbo transitivo, que sempre implica algo que esteja sendo comunicado. No caso do reflexivo, é o próprio emissor, como metonímia. De qualquer forma, acho que o “-se” dá um impacto maior, porque o indivíduo que comunica tem que “se engajar”, por assim se dizer…
Acho que mesmo esses conceitos como agregar valor e conquistar o cliente, as cortesias, os brindes, tudo isso também vai logo logo ser matéria para historiadores. Cada vez mais, é o próprio consumidor que decide em que pé que se dá a relação… mas isso é tema pra outro post!
Abraços!
CurtirCurtir
sempre um prazer ler seu blog. infelizmente os gringos com quem convivo padecem da mesma empafia e é preciso aprender a falar com a língua afiada para dar-se ao respeito. no fim das contas, desde que o resultado seja produtivo como o dessa sua conversa… vale a pena.
CurtirCurtir
Teve uma parte do texto que eu cortei, em que era contada a relação de uma mãe com seu filho pequeno num museu. O moleque encosta numa estátua e a mãe, em vez de dizer (ríspida ou gentil, tanto faz) algo como: “Não toca!”, manda um: “Eu não sabia que seus olhos estavam nas mãos…”
CurtirCurtir
Grato pela visita. Sempre aprendo ao te visitar. Sim, um filme eisensteiniano, seria uma boa para o Almirante Negro!
Abraço fraterno e amigo.
P. S.: Comunique-se sempre com o Eu-lírico, Pensador. Isso nos faz bem!
CurtirCurtir
Salve, Eurico,
Sempre em contato próximo com o Eu-lírico. Deixarei mais mensagens, certamente!
Grande abraço!
CurtirCurtir
Diego, eu me interessei muito pelos dois últimos parágrafos e estou esperando um texto seu que trate especificamente dessa questão, que muito me interessa! Vc disse: se a crise mundial é, de fato, a crise do esgotamento do modelo anterior, então será, necessariamente, caso de uma mudança radical da forma de vida da humanidade. – que mudança seria essa?? Pra onde caminha a humanidade?? bjs
CurtirCurtir
Desafio aceito, Silvia. Como todo mundo, tenho lá meus prognósticos para o futuro, sem grandes ambições de ser um visionário, claro. Mas posso fazer um compêndio de indícios e tentar tirar algumas conclusões, por que não? bjs.
CurtirCurtir
Pronto, desafio executado. Espero que goste!
CurtirCurtir
Meu caro, ao finalizar a leitura senti uma dor no peito, um banho de consciência de ter estado tanto tempo longe do seu blog. Maravilhoso o texto.
CurtirCurtir
É pra escapar a essa dor que eu recebo sempre o Escrevinhamentos no meu Bloglines!
Grande abraço
Diego
CurtirCurtir
Mesmo se as reflexões posteriores não tivessem sido feitas, eu não negaria o imenso sentido que o argumento do Germain tem ao dizer que comunicar-se seria falar consigo mesmo…
Para mim, toda vez que me comunico, nada faço além de expor o que penso para alguém, no intuito de ter certeza que aquele pensamento é meu mesmo, e é coerente e merece ser pensado…
CurtirCurtir
Sentido, faz, mas eu não diria que está correto…
De qualquer forma, acho que a conclusão a que chegamos é mais ou menos a mesma que você expressa, o que mostra que estamos em sintonia… 🙂
CurtirCurtir
Diego, o que é Bloglines?
CurtirCurtir
É um leitor de feeds (www.bloglines.com), concorrente do Google Reader, por exemplo (reader.google.com). Mas se você quiser receber por e-mail os posts do PLSO, é só clicar na coluna da direita, onde aparece “receba por e-mail”.
Abraço
CurtirCurtir
Estreei seu blog hoje. Muito interessante. Tenho convivido com muitas pessoas que desconhecem sua própria lingua, ou melhor, conhecem duas pequenas palavras que podem ter imensas repercucoes: f…. e s…… e as usam em profusao. E a única pessoa ilustrada com quem tenho convivido tenta me ensinar ingles traduzindo minhas expressoes para algo que nao pretendo, nem longinquamente, comunicar! E’ o famoso traduttore traditore…
Feliz de voce que tem com quem dialogar….
CurtirCurtir
Seja bem-vinda, Rondinella! Na verdade, aqui também não é nada fácil dialogar com as pessoas. Eu, por exemplo, fui obrigado a inventar um amigo imaginário…
CurtirCurtir