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Olhos nos olhos

Peço desculpas a Chico Buarque por pegar emprestado o título de sua canção… mas acho que ele não se oporia. Além disso, se é para copiar alguma coisa, que seja uma obra genial. E sou, como já admiti em outras entradas deste espaço, enormemente fascinado pelo poder acachapante do olhar. Nos versos de Chico, a mulher (preciso elogiar a interpretação de Maria Bethânia? Acho que não, pega mal repetir o óbvio) manifesta seu despeito conclamando o antigo amante a revelar, olhos nos olhos, o que lhe causa a felicidade que ela está segura de ter reconquistado. Sou da opinião de que sem a indicação dos olhos nos olhos, o desafio seria nulo. Fraco, artificial, uma tentativa irrelevante de concretizar uma crença meramente racional.

De fato, só mesmo o encontro intencional de dois pares de olhos, recheados, estourando de intencionalidade, pode fixar de fato uma mentira, uma verdade, uma opinião autêntica. Mesmo a razão só consegue, no máximo, pronunciar essas coisas todas. Pode ser em fonemas ou letras, ou ainda gestos, imagens símbolos, qualquer coisa capaz de transmitir um sentido, mas é mera pronúncia, não é transmissão. A fixação, mesmo, só se dá quando os sujeitos se encaram, e se encaram de verdade.

Pois é aí que isso me toca: poucos são os olhos que tenho para olhar e, céus, que falta fazem! Não me entenda mal: os olhos estão por toda parte, surgindo e desaparecendo a cada estação, a cada esquina, em cada sala. Mas que quero eu com esses olhos urbanos, que fogem para o anonimato a cada ameaça de encontro? De tal forma eles me exasperam e entristecem, que prefiro, sem perceber, sufocar minha natural indignação gregária. Resulta que me torno um igual, frio e furtivo como todos os demais, a ponto de escolher a solidão que já me era imposta.

Não, muito antes disso, careço daqueles olhos quentes que se iluminam à nossa vista, os olhos, sem mais rodeios, dos amigos. E se pode parecer estranho que eu não diga, direta e simplesmente, que tenho saudades dos amigos, é que a questão é outra, bem mais complexa. Mais urgente é a presença e, na presença, claro, o face a face: olhos nos olhos. A situação primordial em que um desacordo milimétrico entre palavras e alçar discreto das sobrancelhas atesta, de imediato, a existência de um problema, uma dor, qualquer coisa que o amigo esconde – e esconde, no mais das vezes, de si mesmo. A expressão cúmplice que precede e acompanha o vidro-no-vidro, o copo-no-copo, o olho-no-olho de um brinde camarada, uma expressão sem a qual o brinde é só bebedeira.

Nada contra, por favor, meus contatos como têm sido nos últimos anos! O alô, o “como vão as coisas”, ou “o que tem feito”, “está fazendo muito frio por aí?” e outras frivolidades. Frio está, claro, mas não tanto quanto a frieza dos telefones, dos e-mails que mais parecem relatórios de atividades, em que se vai sabendo de quem casou, quem separou, quem arranjou tal ou tal emprego e mudou de cidade. Fico perturbado só de pensar quanta desgraça, quanto sofrimento, quanto Prozac pode estar escondido debaixo de um “por aqui, tudo ótimo, e por aí?”!

Restam, é claro, os novos amigos, os olhos que se sorriem ainda desconfiados, quase em desespero pela própria raridade. Os brindes enfáticos, preocupados em se assegurar de que podem ser substitutos para a cumplicidade que se esfumou na distância. Verdade seja dita, às vezes isso pode acontecer, eles se correspondem, sim. É uma alegria, um enriquecimento, mas não um substituto que baste. Ademais, mesmo os bons novos amigos que se fazem vêm com prazo apertado. Quantos já não voltaram para casa e se tornaram, eles também, amigos de telefone e e-mail! A intimidade que se vai buscando no dia-a-dia resulta, em geral, algo ressabiado, embora fundamental. Como é estranho o permanente estado de sobressalto com a possibilidade de uma nova despedida e o retorno ao ponto de partida…

Talvez mais estranho ainda, e mais próprio à personalidade peculiar a este mundo que se vai construindo, são os contatos para os quais o velho (e, para muitos, ultrapassado) olho-no-olho nem entra em consideração. Nomes que aparecem nas navegações do tempo ocioso; amigos, e amigos de amigos, em redes sociais. Conversas por comentário, afinidade ou discordância na leitura de textos de terceiros, também desconhecidos. Programas de conversa à distância, digitada enquanto se realiza alguma outra tarefa, como a de escrever sobre a amizade para postar na internet.

Quase não me reconheço pela pouca surpresa que tenho da considerar como amigos pessoas que jamais vi, cujas vozes desconheço, cujos olhos nunca fitei. Alguns não passam de apelidos, pseudônimos, máscaras carnavalescas que, de inocentes, redundaram num autêntico seqüestro ontológico. Outros têm nome, sobrenome e fotografia publicada no perfil, e já é um alento, embora nada garanta que tudo aquilo não seja falso, inventado, um trambique, uma brincadeira. Nada disso, porém, impede que conversemos, contemos causos, ouçamos histórias, aceitemos palpites e conselhos. Não é incrível que nos entreguemos a relações dessas com a maior naturalidade? E será loucura imaginar um futuro em que esse seja o contato predominante entre as pessoas?

Loucura, talvez não seja, mas será menos humano. Ou então, claro, a humanidade é que terá de ser outra, o que não chega a ser uma hipótese tão absurda quanto pode soar. Somos uma raça que já quase não fala com a própria voz, parte em viagens sem deslocar o corpo, dobra a própria existência em mundos codificados, por pura diversão. Então, nada de ilógico em pensar que não olhamos mais com os próprios olhos, não diretamente. Que mediamos toda a nossa percepção do mundo por um véu que, num eufemismo, chamamos de tela. Nos abraçamos por siglas e nos emocionamos com figuras coloridas. Se é assim que haveremos de ser, bom, assim sejamos.

Mas não sei se há lugar para mim num mundo como esse. Olho na tela, tela no olho, ondas e cabos transoceânicos fazendo as vezes do curto espaço entre os rostos de dois velhos amigos na mesa de um bar. Até onde posso enxergar, de meu ponto-de-vista ultrapassado pelo visto, é que pode ser todo feito de máscara e mentira, esse novo mundo que me exclui. Esse mundo que terá abolido o olhos-nos-olhos e às verdades, mentiras e opiniões que poderiam ser feitas restará apenas ser pronunciadas.

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13 comentários sobre “Olhos nos olhos

  1. josaphat disse:

    Fiz, há um tempo atrás, uma tradução para um fragmento de Safo que fala sobre a graça (palavra difícil de traduzir) do olhar do amigo ou da amiga. Quero te dizer que, por causa de uns olhares, passei os últimos meses do ano que findou em autêntica ansiedade, o que provocou uma situação patética. Estranho é que, às vezes, falam os olhos de um lugar tão profundo que a própria pessoa o não conhece, não o sabe que falou.

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    • osrevni disse:

      Não sou muito de arriscar palpites, mas esse olhar tão perturbador parece questão de sentimentos muito mais do que amicais…

      (PS: É uma honra ter un helenista na caixa de comentários!)

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  2. Querido, estou sentindo muita, mas muita falta de vocês. Tenho lhes telefonado com frequência, e sempre acompanho suas postagens. Discussões filosóficas e Geopolíticas não são meu forte, então me permito ler sem me pronunciar.
    Mas esse post me tocou de uma maneira profunda. Estive na casa de nossas amigas em comum na semana passada, para comemorar o aniversário de uma delas, e falamos de vocês. Sinceramente, pressentimos que vocês deveriam voltar. Esse frio lá fora, e essa frieza das pessoas é muito dura.
    Talvez a depressão passe com o nascer do sol e a mudança da estação. Mas quero que tenha certeza que sinto muito a falta de seus olhares, de seus abraços. E que receberei vocês de braços abertos e olhos marejados, se assim decidirem.

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  3. Querido, tenho acompanhado sempre suas postagens, mas discussões filosóficas e geopolíticas não são meu forte, portanto, me abstenho de comentar.
    Mas esse post, em particular, me tocou profundamente.
    Semana passada estive com amigas nossas em comum, na casa de uma delas, para comemorar seu aniversário. Naturalmente falamos de vocês, e pressentimos que vocês querem voltar.
    Talvez com o nascer do sol, e com a mudança da estação, essa depressão passe. Mas quero que tenha certeza que eu sinto muito, mais muito a falta de seus olhares, e de seus abraçõs apertados, e que, se decidirem voltar, eu os receberei de braçõs abertos, e olhos marejados. Olhos de uma amiga verdadeira!

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    • osrevni disse:

      Oi Denise,
      Sobre esse pressentimento, não sei… nossa alma cigana continua inquieta por novos espaços, e os antigos, claro, não são novos. Mas tudo pode acontecer, aceitamos o fato de que é preciso receber as coisas como elas vêm!
      Beijos
      Diego

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  4. Como me identifiquei com você, nesse texto. Estamos num planeta onde o toque é ameaça. Onde olhares são desconfiados. Mas ainda assim, um mundo que vale a pena. Sempre há a esperança de que dias melhores virão! tenho saudades dos amigos que deixei…tudo ficou pasteurizado, ficou sem gosto. Onde eles estão? Felizes? Ou já se contaminaram com o vírus do “pouco que basta”? Não mais nos doamos, não temos tempo. E onde está o tempo?

    “A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos para o futuro” (Cecília Meireles)

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    • osrevni disse:

      Sobre o tempo, gosto de pensar que ele qualquer coisa que, na verdade, está em nós, é fabricado pelo fato de estarmos acordados e abertos para o mundo… Não podemos ganhá-lo nem perdê-lo, tudo que podemos aprender a fazer é multiplicar cada instante para que sejam mil, quer dizer, que cada coisa que nos aconteça não seja só um evento, mas toda uma miríade deles… Provavelmente estou errado, mas é uma forma de pensar que ajuda a querer sempre viver mais.

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  5. Pois é. Sinto o mesmo. E vivo na cidade em que nasci, tenho minha mãe com Alzheimer na casa dos fundos, minha irmã no bairro ao lado, filhos, etc.

    Mas os amigos, aqueles com quem se faria um sarau, uma festa, qquer coisa… Alguns deles vejo apenas uma vez ao ano. Em meu aniversários, normalmente, porque nem aniversários são mais comemorados. Basta um recado no Orkut, né?

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    • osrevni disse:

      Morte ao orkut! Mais uma dessas mentiras do manter-se em contato, mais uma mistificação, um engano, um engodo. Contato envolve pele, envolve voz e, principalmente, envolve olho no olho.

      Sobre a amizade, ainda pretendo escrever sobre isso, mas penso que a verdadeira é aquela que, mesmo depois de anos e anos de afastamento, um eventual telefonema e reencontro é tão natural como se fosse quotidiano… não acha?

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  6. sim, olho no olho dos amigos num abraço caloroso, olho no olho na mulhe que diz amar – nos, olho no olho revela logo a mentira, olho no olho confirma fasidade…e eu nessa minha idade me resta a saudade dos olhos da galera do remo, remam em outros mares, da galera do mergulho esportivo atrás dos peixes, os arpões estão no fundo do armário, da galera do ciclismo indo e vindo do Leblon ao Recreio, as bicicletas monumentos pendurados no teto, a galera do judô aposentada,
    a galera do chope e gandaia só nas fotos amareladas (do Amarelinho),
    e eu só com um olho o outro apagado, olho os filhos quando aparecem, os netos quando de mim se lembram, em olho com amor e carinho a mulher que vive comigo há sessenta anos, que alegria!

    PS amigo, recebeu meus livros?

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    • osrevni disse:

      Grande mestre,

      Em vez de teus livros, recebi uma carta dizendo que o carteiro do Chronopost não conseguiu entrar no prédio por causa do código. Telefonei-lhes e passei a senha, eles prometeram que segunda-feira terei o pacote em mãos. Será um prazer enorme levá-los em minha viagem a Londres, semana que vem.

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  7. Ghjgbask~l sagd* hsgbytrc %(#dsgnall( !

    Vjajoism WW+saj > ll@dshygdak65<

    (Desculpe-me, caro blogueiro e distintos leitores, mas fiquei com um nó na garganta depois de ler esse texto. Volto depois para comentar alguma coisa inteligível.)

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  8. giselle disse:

    Nossa! Que esse seu texto se encaixa como luva no meu discurso… em vão… caminho no sentido contrário… Mas é isso! Não consigo me adaptar nesse novo mundo tão virtual.. onde estão as pessoas? Todo mundo assim tão distante… Parabéns! Amei o texto!

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