costumes, crônica, descoberta, desespero, ironia, obrigações, opinião, passado, prosa, reflexão, tempo, trabalho, tristeza, vida

Lições de quem largou o vício

No primeiro dia, tudo parecia depender de nosso heroísmo e abnegação. Largar as drogas parece ao alcance da mão, ao menos para quem tem força de vontade. A desintoxicação, pensando bem, não exigiria nenhum grande gesto, no máximo um pequeno sacrifício: abster-se de dobrar o filtro, de acender o fogão, de riscar o fósforo, de meter a colher no pó, de derramar a água fervida, de acrescentar açúcar, de saborear. Se um único desses movimentos fosse evitado, a salvação estaria próxima.

Era sábado. Dia bem escolhido, sem obrigações, ideal para enfrentar a sonolência e a ofensiva germânica das dores de cabeça. Matar ou morrer. Não havia mais alternativa senão largar o vício que nos corroía por dentro, dissolvia nossos estômagos, impregnava nossas roupas, amarelava nossos dentes e, cheguei a crer, nossa pele.

Ah, líquido insidioso! Quiseste, pois, comprar nossa saúde com energia e sabor? Quiseste envenenar nossas artérias com o ardil de teu aroma? Acreditaste que, dependentes de ti para acordar, trabalhar, raciocinar, não teríamos a coragem e a disposição para expulsar de nossa casa tua perfídia indiscreta? Pois que dirás agora?

De fato, fomos heróicos e abnegados no sábado. No domingo, igualmente. Passamos o dia esparramados sobre a cama, depois sobre o sofá, incapazes de preparar refeição mais complexa que um punhado de sanduíches. Na bancada que serve de despensa, os sacos de pó seguiam intocados e nós tratávamos de não pensar neles. Víamos televisão, embasbacados, porque filmes exigiriam uma concentração inatingível. E se, dentro do crânio, os miolos pulsavam em agonia, fazíamos de conta que era enxaqueca, contra a qual nada se pode fazer.

Segunda-feira chegou, com sua rotina compulsória. Para o tormento físico, tentamos aspirina, a chave-mestra das pílulas. Tomamos logo duas cada, cientes do sofrimento que ainda haveríamos de encarar ao longo do dia. Recorremos à força de vontade para vestir as roupas, amarrar os cadarços e preencher os bolsos com chave, carteira, celular. Colocávamos em palavras nossa convicção: “É preciso ser forte, temos de vencer.”

Quando um de nós se aproximava de uma recaída, lançava um breve olhar para o outro, na tentativa de buscar forças na cumplicidade e no amor. Era nossa única esperança para vencer o empuxo do vício, a crise de abstinência, o desejo lúbrico por aquele líquido negro, ligeiramente viscoso, cuja imagem fantasmagórica parecia pairar constantemente à frente de nossos olhos. Deu certo. Sem querer desapontar o outro, nem eu, nem ela recorremos a uma xícara às escondidas.

Mas persistia a questão da dor, que não passava. E havia trabalho a fazer, muito trabalho. Impossível, debaixo das ondas que afogavam nossos cérebros. Era um impasse evidente. Não sabíamos o que fazer. Se o desempenho profissional se visse comprometido, a volta ao vício seria uma questão de tempo. Pouco tempo. De repente, uma solução possível se afigurou: não havia alternativa, senão cheirar. Fui buscar o pó na despensa. A lata que tinha passado o fim-de-semana intocada me esperava com a paciência de um monge tibetano. Recolhi-a e a levei de volta para a sala. Tínhamos, é verdade, dúvidas de que fosse a melhor atitude. Afinal, cheirar está a um passo de beber. Bem teríamos pensado duas vezes, mas a verdade é que não há motor mais possante que a falta de opção. Destampei a lata.

Soltaram-se os eflúvios, que de imediato se puseram a flutuar pelo recinto. Cheguei a ver alegres tons rosados, em contraste com a verdadeira cor do pó, madeira quase negra. Aproximei o nariz, ainda um pouco hesitante, e aspirei. Faltam palavras para expressar o prazer. Que alívio, um contato afastado, mas real, com o objeto de meu vício. A intempérie no sistema circulatório se acalmou um tanto, tornou-se brisa controlável. Eu poderia ter passado o dia todo com a cara enfiada naquela lata, sujando a ponta do nariz e sofrendo alucinações. Mas passei-a para ela, e ela reagiu de forma idêntica. Desta vez, meu prazer foi contemplar a iluminação imediata de seu rosto.

Assim levamos a semana. Acordávamos, tomávamos o chá-da-manhã, corríamos para a lata milagrosa, santuário das narinas abstêmias. Depois, tentávamos tocar a vida, na medida do possível. Fomos menos produtivos e, desconfio, mais irritadiços. Mais preguiçosos e menos tolerantes. Se, por um lado, alguém parecia nos martelar a cabeça, por outro, aos poucos sumia a fogueira do estômago. Aguentamos.

É essa a palavra. Aguentamos.

Cinco ou seis dias depois, parecia passada a crise. Podíamos levar uma vida quase normal, sem aquela agitação doentia, os olhos esbugalhados, o tremor nos dedos. Forçoso confessar que nos arrastávamos um tanto, sem o ritmo da batalha do dia-a-dia. Mas um ganho era líquido, sem trocadilho, e certo. As cabeças não doíam mais. Esse pequeno triunfo parecia coroar nosso esforço.

Acontece que nos deixamos levar pela ilusão. Sábado à noite, um bar com amigos, a lista de bebidas parecia incluir o item ideal para quem quer levar uma vida normal, como a de todo mundo, isto é, dos limpos, abstêmios, não-viciados. Um drinque que leva a maldita bebida de que tínhamos sido dependentes. Não foi por tolice que caímos na armadilha. Foi traição do inconsciente, ávido por um pouco mais daquele gostinho saudoso. Foi assim que, na manhã de domingo, muito além da ressaca, demos com a velha crise de abstinência a bater na porta.

Em arrependimento, arrancamos cabelos. Imploramos clemência aos espírito da droga. Trocamos acusações vazias, já sabendo que aquela era uma culpa compartilhada. Mais calmos, recorremos a um juramento, como os que se faziam na Idade Média. Dali por diante, seríamos mais fortes, dissemos entre nós.

E fomos mesmo. Exceção feita para um único dia. Quinta ou sexta, já esqueci. Acontece que era um momento-chave de nossas vidas. Demandava um nível de concentração invejável. Como exigir que passássemos sem uma xícara? Pelo menos foi uma só, asseguro. Era inevitável. Caso contrário, não teria como não submergir.

Pois foi aí que aconteceu o milagre. Ao primeiro gole, um enjôo, acidez na boca, discretas convulsões. Sim, um milagre: o corpo rejeitava aquela invasão ácida e quente, de um líquido sem o qual, poucos dias antes, não conseguia se manter coerente. Nesse instante, entendemos que estávamos limpos. Nosso sangue, composto até então de alguns glóbulos, umas gotas de água e um dilúvio de cafeína, já tinha voltado a ser vermelho. Uma vez na vida, havíamos vencido.

Mas não estávamos inteiramente livres de problemas. Precisávamos encontrar uma maneira de preencher a lacuna da disposição física e mental. Essa tinha sido, afinal de contas, nossa desculpa para mergulhar tão profundamente no vício, na dependência, na entrega servil a uma substância pesada. Que outra fonte poderia nos fornecer a trimetilxantina indispensável?

Pensamos primeiro naquele famoso refrigerante imperialista; mas se acidez é o problema, não pode ser essa a solução. Consideramos o chá, mas o resultado foi decepcionante. Chocolate também tem seus efeitos colaterais terríveis, queira Tim Maia ou não. Pílulas? Nada disso, nosso estado de dependência jamais chegou a níveis tão patológicos.

Finalmente, encontramos. Mais uma vez, teríamos de recorrer ao pó, a divina poeira que anima as almas. Uma loja de produtos naturais, na rua de comércio vizinha, vende guaraná em pó. Na seção, claro, de produtos exóticos, muito estranhos, vindo daquelas terras em que as plantas são verdes o ano inteiro. Eis aí a saída. Guaraná é riquíssimo em cafeína, não costuma fazer mal ao estômago e não deixa ninguém com dentes amarelos. Compramos.

Tem funcionado. A cada manhã, misturamos ao suco umas pitadas do guaraná. Com ele, podemos levar o dia inteiro como crianças num parque temático. Só tem um porém. Aliás, sempre tem algum, raios! O bendito pó tem um gosto terrível. Nada parecido com o refrigerante que era brasileiro ou o suco adocicado que se vende nas farmácias. Este que adotamos é arenoso e amargo. Terrível. Como se diz, gosto de remédio. A tal ponto que, da última vez em que o engoli, me flagrei aos suspiros:

– O café era tão gostoso…

* * *

PS: Não foi a primeira vez que tentamos limpar nossos organismos. A primeira, como deve ter ficado claro, falhou vergonhosamente. À época, também escrevi sobre o assunto. O texto pode ser encontrado aqui.

Padrão

19 comentários sobre “Lições de quem largou o vício

  1. Viva!
    Você de facto é 1 grande escritor e muito prolífero!
    Tem uma produção impressionante e quando escreve nunca se contenta com poucas linhas.
    Parabéns!
    Para quando 1 livro?
    Eu ando com menos tempo e disponibilidade para escrever mas continuo a manter o meu blog.
    Neste momento iniciei uma colaboração com um pequeno semanário de província mas é algo que me irá dar gozo, pois irei escrever crónicas sob um ponto de vista pessoal.
    Abraço e continuação de bons escritos.

    Curtir

  2. É mole não… he-he-he!
    O texto está super bem construído, como sempre, belíssimo. Quanto ao conteúdo, confesso estar em estado avançado de dependência, já que troquei cevada pelo pretinho. Ai de mim…

    Curtir

  3. putz, agora você me assustou, tanto sofrimento e dor por causa do café? e eu pensando que era algo heavy como caldo de cana,quer saber? não jogo pedras no telhado de vidro dos outros, nicotina e cafeina é meu barato, alcool não me permito, diabete e ulcera impedem e me diga nem mesmo coca-cola?
    abraço

    Curtir

  4. @Salve, Bruno! Fico feliz em saber que você está aumentando seu raio de divulgação. Espero que você possa colocar em linha os textos que publicar, para que seus leitores distantes possam continuar a acompanhá-lo!

    Curtir

  5. @Iosif, nada que venha da cana faz mal, essa é a minha filosofia. Nicotina não me atrai e cafeína tem aos montes por aí. Coca-cola, guaraná, chocolate…

    Bom, verdade seja dita, um espresso aqui, outro ali, tudo bem…

    Curtir

  6. Ricardo Cabral disse:

    @Diego, café e vinho, bem dosados, são o nectar dos deuses! Não sei da qualidade do café que vcs tomam, mas algumas marcas italianas (beneficiadoras de grãos importados do Brasil e outras partes do mundo) são o supra-sumo, a quintessência do sabor matinal. Moê-los na hora, então, é prolongar o êxtase, fazer com que um dia sem maiores perspectivas se torne uma jornada fadada à felicidade.
    Sinto muito, mas não compartilho desse teu sofrimento, e ainda por cima te recomendo o café Manaresi, de Florença. É como atingir o nirvana!

    Curtir

  7. @Cabral, onde já se viu viciado dosar bem alguma coisa? Ou você considera que quatro copos (não confundir com xícara) de café por dia (conta conservadora) é uma boa dosagem? Nem me fale em néctar dos deuses, era exatamente essa a sensação que eu tinha ao tomar um cafezinho…

    PS: Ainda bem que você não compartilha do sofrimento, homem puro, sem vícios! 🙂

    Curtir

  8. Há tempos venho tentando largar o vício, mas ele me chama logo ao despertar, e nem o cheiro do pó adianta.
    Já tentei substituições, vinho, chás, sucos, chocolate (mas esse, na maioria das vezes, pede o acompanhamento, do pretinho básico e quando vejo lá estou eu, em frente a cafeteira e a xícara… mas quem sabe um dia, ele venha a se tornar um consumo esporádico
    Até lá,
    pausa para o café.’um forte abraço

    Curtir

  9. Bem vindo ao meu jovem blog! Pois é, nosso querido maestro está enterrado no meio de uma praça. Sua cidade natal possui um museu mediocre (tudo bem que museus nunca podem ser considerados mediocres, mas, Carlos Gomes merecia coisa melhor) e um conservatório com professores no mínimo corajosos… O pior é saber que essa realidade não é exclusividade de Campinas.
    Ah e, quanto aos vícios? Não fazer nada é um vício sempre bem vindo na minha vida! Difícil de largar, mas, as minhas unhas roídas também condenam muitas coisas.
    Bom final de semana!

    Curtir

Deixar mensagem para Ricardo Cabral Cancelar resposta