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O caso dos pensadores mortos

Condorcet na Sorbonne
Um mistério assustador. As autoridades estão alarmadas com a onda de mortes que assola o país, cujas vítimas seguem um padrão: todas são trabalhadores intelectuais. A cada semana, o corpo inerte de um acadêmico ou pesquisador é encontrado em sua própria casa. Segundo os relatórios de investigação, os óbitos acontecem à noite, quando os pensadores estão solitários, trabalhando em suas escrivaninhas. Morrem de súbito, nenhum deles com carta de suicídio ou marca de violência. A polícia não consegue levantar hipótese nenhuma para dar início aos trabalhos.

Até a última semana, o governo procurava lidar com a crise a portas fechadas, conforme recomenda o protocolo. Os líderes da nação temiam causar pânico na opinião pública, já dada a comoções midiáticas quando confrontada a casos de mortes em série. Por prudência, escolheram a via do silêncio. Porém, a última morte recebeu uma cobertura tão escandalosa dos jornais e das rádios que foi impossível sustentar o segredo.

O corpo de um matemático de renome, professor de cursos disputados, pesquisador das equações mais abstrusas, foi encontrado sentado em seu gabinete, a cabeça sobre uma pilha de papéis, os olhos arregalados, fixos, a boca escancarada, os dedos ainda apertando a caneta. O pobre cientista perdeu a vida no momento em que estava para resolver o mais complexo problema de sua carreira, uma série estatística que haveria de revolucionar o funcionamento das redes de computadores. Contudo, o sinal de igualdade da última linha, que daria a resposta para toda a questão, desfez-se num traço aleatório. Na página, em vez de uma solução, a tinta reproduziu o gesto da mão que traçava o derradeiro desenho, sem forma ou sentido, do homem que expirava.

Confrontado com as suspeitas da população, o governo enfim concluiu que deveria convocar a imprensa para uma coletiva. O ministro da Segurança Absoluta tomou a palavra para explicar, com toda franqueza, as providências que seriam tomadas com vistas a evitar novas perdas para a ciência. Uma força-tarefa de investigação foi montada às pressas, com os melhores detetives dos principais departamentos de elite. Pediu-se a cada antropólogo, sociólogo, filósofo e historiador que evitasse passar a noite sozinho, por via das dúvidas, mesmo que houvesse um artigo a entregar ou uma aula a preparar para o dia seguinte. Um telefone foi colocado à disposição para responder a todas as dúvidas, ainda que não houvesse muitas respostas a fornecer.

O ministro, para finalizar, cuidou de transmitir tranqüilidade à população. Apenas um setor da sociedade, ele lembrou, foi atingido por essas mortes misteriosas. Pelo menos por enquanto. Embora nossas ciências e nossa cultura tenham perdido alguns nomes insubstituíveis, a economia não foi, e nem será, abalada. Todas as vítimas são intelectuais: físicos, geógrafos, psicólogos, jornalistas. Perdeu-se, aliás, um jovem poeta, mas a ligação dessa morte com as demais ainda é difícil de comprovar.

Nenhuma categoria indispensável foi atingida. Ninguém do mercado financeiro, à exceção do corretor com overdose de heroína e o investidor que, tendo feito uma má escolha, pulou da janela do escritório, duas tragédias sem relação com o caso. Ninguém dos transportes, nem da geração de energia, nem da televisão ou do varejo. Faleceu, sim, um importante conselheiro político do presidente da República, é verdade, enquanto planejava a fusão de dois partidos progressistas que, pelo andar da carruagem, terão de seguir separados e em conflito. Mas essa perda, embora lamentável para as instituições, não haverá de atrapalhar a gestão do Estado. O chefe de governo é perfeitamente capaz de tomar suas próprias decisões, baseado apenas em seu instinto, seu bom senso e as opiniões sempre ponderadas de quem costuma discutir política em nossas cidades.

Portanto, concluiu o ministro, não há motivo para alarme. A polícia trabalhará com afinco. O quotidiano de cada um não está ameaçado. A vida de todo mundo pode seguir tranqüila sem as teorias, as propostas e as advertências de quem é pago tão-somente para pensar, falar e escrever. Nada mudará, a não ser para aqueles que têm um pensador na família; esses viverão em constante receio de perdê-los. Mas que não se deixem dominar pela falta de esperança, uma vez que os zelosos policiais da pátria não medirão esforços para solucionar o caso.

Para os demais, não há risco algum, o ministro fez bem questão de frisar. Nada mudará. Os hábitos, os problemas, as condições de vida, os conflitos, as paixões, os preconceitos, as misérias. Para levar a mesma vida de sempre, afinal, não é necessário refletir. Basta continuar fazendo o que já se fazia. Basta ter as mesmas opiniões e os mesmos gostos. Basta ter fé nos mesmos profetas, sonhar os mesmos delírios, desejar os mesmos luxos levianos. A perda, no fundo, não é tão grande quanto chegou a parecer.

* * *

Posso perceber que as mortes vêm perdendo espaço no noticiário. Ninguém comentou quando um par de artistas contestadores também apareceram sem vida. Inexplicavelmente. A força-tarefa, envergonhada com a ausência de resultados, foi desmembrada e realocada para o combate ao tráfico de armas, um problema muito mais urgente e que não pára de crescer. A única grande reação teve lugar nas universidades, que fecharam ou reduziram os cursos de ciência pura e reforçaram o orçamento para Administração de Empresas, Turismo e Relações Públicas. Falta de interesse, elas explicam.

O entregador de jornais da minha rua riu às gargalhadas da nota de pé de página com o obituário de um grande semiólogo que tombou nesta madrugada, quando as redações já estavam a ponto de fechar as edições. O garoto quase imberbe achou engraçado o nome do sujeito, realmente muito difícil de pronunciar. Só ficou quieto porque um guarda que passava se aproximou para multá-lo; ele largara sua motoneta sobre a calçada, como de hábito. Diante de meus olhos, os dois se engalfinharam após um breve intercâmbio de impropérios.

Não foi fácil separar a briga, mas, finalmente, terminamos todos no boteco da esquina, tomando cerveja com tremoços. Discutíamos o de sempre. Uma mulher famosa, um time ruim. Deixei de me preocupar com o mistério dos intelectuais tombados, mais insondável do que os problemas que eles mesmos faziam tanto esforço, e tanto sofriam, para abordar. É um caso do passado, convenhamos. Não restam, mesmo, muitos mais para morrer.

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

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11 comentários sobre “O caso dos pensadores mortos

  1. Emmanuel disse:

    Muito bom esse conto. É bem borgiano. Além do mais, a crítica que ele traz é muito atual; qualquer um que se meta na vida acadêmica pode sentir o desprestígio da atividade diante da sociedade. Se você sente isso aí da França, imagina como é ser, ou pretender ser, intelectual aqui no Brasil.

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  2. Aliás, não sei por que, mas o seu texto me fez pensar em greves. E me veio à cabeça o furdunço que causam aquelas dos ditos “serviços essenciais”, como transportes e lixo, que, com a exceção da de Nápoles, costumam ser resolvidas rapidamente, senão o mundo vem abaixo. Em compensação, greves no ensino costumam se arrastar por uma eternidade, não é?

    Algumas observações:

    1) Sobre greves na educação, só são resolvidas de forma mais rápida aquelas no ensino básico. Isso porque esse tipo de greve obriga os pais a fazer uma ginástica danada para ocupar os seus monstrinhos, digo, filhos ociosos em casa. Essas, os governantes, que tb fazem filhos, querem resolver rapidinho!

    2) Há também aquela greve ocorrida em Atenas e comandada por Lisístrata, mas dizem que foi uma mera comédia. Eu bem que preferiria acreditar num Aristófanes historiador, e numa humanidade mais sábia…

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  3. o artigo ou seu texto aqui publicado o considero efemistico (sem condena – lo), pois falando com creuza eu diria que o mundo enloqueceu, dinheiro (finanças) está na ordem do dia, cultura e outros afins morrem assassinados, a ignorância predomina, nada construtivo mais importa, os economistas de puro sangue acham que são cientistas, emitem opiniões sem comprovação, não é ciência pura dependente que é do comportamento populacional, mas os moços, a nata do QI quase genial se escreviza no mercado de capitais, intermediam fortunas, independente dos sucesso da “aventura” enriquecem sem nada produzir, o mundo gira e o dinheiro se multiplica, não é aplicado na ciência, tecnologia, nada constroi, na produz e se esse dinheiro “tio patinhas” aumenta de volume o povo se rosto se afunda, não me considero muito burro, mas de onde vem esse dinheiro que só faz se multiplicar? Dá pra explicar?

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  4. Chego até aqui a partir de sua visita ao nosso “A Pedra e a Fala”. Só tenho a agradecer, meu caro, a oportunidade que me foi dada de encontrar textos de rara qualidade.
    Vou me demorar por aqui, ler o que for possível agora e retornar sempre.
    Um abraço.

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  5. Gostei da crítica. Mas me deixou uma dúvida: vc já leu Jô Soares? Não se ofenda, é só curiosidade mesmo.

    Qto aos intelectuais, eu diria q estão migrando para um lugar melhor. É a evolução natural das espécies, não? Quando uma raça encontra-se ameaçada, um de suas principais defesas é mudar para longe. Quem sabe se um dia nós os alcançaremos…

    1 abraço e obrigado pela visita.

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  6. Será que eles não começaram a morrer a partir do momento em que, depois da Segunda Guerra, o Discurso perdeu qualquer liame com as práticas efetivas? Isto é, entre o Discurso e a Ação o liame apenas começou a ser válido se ligado a uma série de conveniências, exteriores ao Discurso, que permitiram aqui e ali que continuassem ligados. Mas o que torna um discurso coerente ser passível de efetividade não é mais o próprio discurso, e depois de Toni Negri ninguém mais se interessou no que um pensamento poderia ter de perigoso… 😉

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