crônica, ironia, prosa, reflexão

O envelhecimento em seus primórdios

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Primeiro foi meu pai, afirmando que não queria pagar meia-entrada no ônibus para não sentir que envelhecia. Com o acréscimo: também não queria deixar de viajar com mochila nas costas (mas deixou) ou começar a jogar golfe com carrinho elétrico – essa última prática, coisa de velho mesmo, e pior, americano. Pior do que ser velho é sentir-se assim.

Depois, uma reunião com os amigos da faculdade, todos recém-formados e ainda bastante jovens (embora cá e lá as entradas e brisa no cocuruto já comecem a preocupar). Percebemos que já estamos todos assentados, a maioria empregados, alguns à beira do casamento. Houve até quem reclamasse da cerveja, dizendo que não cai bem no estômago como costumava (teria eu ouvido um arremedo da palavra “antigamente” na boca de alguém?).

Pois não pudemos escapar à sentença: estamos envelhecendo. Parece tolice essa frase numa mesa de rapazes que existem há pouco mais de um quarto de século, no máximo. Mas sim, confesso que era esse o travo nas gargantas de quem não mais colecionava conquistas ou virava noites em competições etílicas.

Amadurecimento… Pois sim! As frutas é que amadurecem, caem do pé, são comidas ou apodrecem. Pessoas não amadurecem, apenas envelhecem. No máximo elas aprendem a ser civilizadas, o que não necessariamente é a mesma coisa. Honestidade terminológica, então: envelhecer. Que raios será isso? Quando é que começamos a pensar nesse monstro se cinco olhos, oito asas, três fileiras de dentes (já caindo) e uma sucessão incontável de bengalas, dentaduras e rugas? Melhor colocando: quando é que a curva se torna descendente, do orgulho de crescer passa-se ao medo da decrepitude?

Escutando meu pai, meus amigos e a mim mesmo, deixei de lado a idéia física de incapacidade para determinadas atividades, enbranquecimento do cabelo, enrugamento da pele e assim por diante. Isso, para mim, é só a ponta do iceberg, para usar uma expressão bem corrente. Tenho um amigo que desde os quinze anos mal tem fios no arco que separa as duas orelhas. Nem por isso seja ele velho, pelo contrário, até hoje trata-se de um garoto disfarçado (por pura molecagem) em homem, já perfeitamente acostumado, para não dizer conformado, à obrigação de passar protetor solar no alto da cabeça.

Dizem que se começa a morrer a partir do momento mesmo em que se nasce. Parece uma frase pessimista, mas não consigo lê-la da mesma maneira. De certa forma, ela diz que ao pular de pára-quedas ou estragar o fígado pela bebida, você não está morrendo mais do que ao mamar no sagrado seio de sua mãe. Morte por morte, é melhor ir morrendo com alegria, mil vezes, do que viver a pedir vistas do processo até a sentença se tornar inevitável.

Pergunta capciosa: será que podemos dizer o mesmo do envelhecimento? Não creio. Um bebê que sai para o mundo está mais próximo da morte do que ao ser concebido. Mas ele fez uma verdadeira conquista. Veio ao mundo, à luz, a todas essas potecialidades de gozo e sobretudo miséria (mas miséria criativa). Isso é pura juventude. É o começo do caminho para o túmulo, claro, mas nada tem a ver com o envelhecimento.

Da mesma maneira, deixar de engatinhar quando se começa a caminhar em duas pernas é juventude, vigor, conquista, vitória contra suas próprias limitações. A mesma coisa para o momento em que se deixa de mamar no peito para comer no prato os legumes amassados pela mamãe ou a babá. Aprender a falar, a usar o penico, a correr, idem. Ir para a escola, passar de ano…

Então qual é a primeira atitude verdadeiramente ligada ao envelhecimento que temos na vida? Ora, se abdicar de algo, digamos um hábito, em função de uma conquista, não é envelhecer, mas envelhecer é, pelo contrário, perder a aptidão para atividades já conquistadas sem em troca instalar nenhuma aptidão que possa ser considerada superior (por exemplo, de mamar para comer sólidos), então devemos procurar a inauguração do envelhecimento no primeiro momento em que largamos algo sem conquistar nada por cima disso. Em outras palavras, crescer é poder mais; envelhecer é poder menos.

Matutei bastante sobre a questão. Após semanas de meditação, isolado num quarto escuro e abafado, cheguei a uma conclusão que pode não ser exata como gostaria um cientista, mas é emblemática e atinge os propósitos deste pequeno e ligeiro ensaio. A maior parte de nossas vidas, passamos num estado intermediário entre crescer e envelhecer. Quando podemos correr menos, podemos pensar mais. Quando podemos trabalhar menos, podemos ensinar mais. Quando temos menos fôlego para o sexo, temos mais habilidade para dar prazer.

Mas esse processo tem um primeiro passo. Procuramos aqui a primeira coisa de que abdicamos à toa, apenas para envelhecer, não para ganhar algo em troca. Pois bem, eis a resposta: é a cambalhota. Por que, lá pelos sete, oito anos, deixamos de dar cambalhotas espontaneamente? Por que não nos divertimos mais com ela, se ela nos dava tanto prazer? Seria porque estamos longe demais do chão? Ou porque as substituímos por brinquedos como a bicicleta ou a televisão, a famigerada televisão? Ou porque não pega bem entre os colegas?

Haverá quem diga: ginastas e dançarinos dão cambalhotas a vida inteira. É verdade. Por outro lado, jamais verá você um ginasta que, contente com o resultado de algum exame, saia pelas ruas a virar cambalhotas. Não. Um ginasta, um dançarino, um atleta, veste suas roupas de ensaio, faz seus alongamentos indispensáveis, conta: um, dois, três, quatro, e dá sua cambalhota milimetricamente calculada para engatar-se no próximo passo, em geral algo muito mais difícil e impressionante, que lhe renda uma boa nota dos jurados (porque uma singela cambalhota não basta, seria motivo de risadas). Para o dançarino ou o ginasta, a cambalhota é como um formulário para o contador ou o funcionário de cartório.

É inevitável. Certamente depois que a idade se passa a contar em dois dígitos, as cambalhotas estão fora do cardápio. Talvez até antes. Não consigo me lembrar, e olha que me esforcei, da minha última cambalhota.

Pois daí por diante, cambalhotas devidamente riscadas do repertório, o envelhecimento é uma bola de neve de que não se pode escapar. Enquanto vão-se ganhando atributos e capacidades, deixa-se de torturar gatos, bagunçar o quarto, jogar bafo, pedir o telefone das moças, tomar litros de cerveja, passar noites em claro, viajar com a mochila nas costas, trabalhar, fazer amor, enxergar, ouvir, sair de casa… No início, sentimos que estamos amadurecendo, depois percebemos que estamos envelhecendo, por fim deixa-se de aprender o que quer que seja para sucumbir à decrepitude, isto é, se antes disso nenhuma doença ou caminhão desgovernado não cruzarem nosso caminho. Nesse processo, gastam-se décadas, mas o início está lá atrás, quase no começo da vida, onde acaba a cambalhota.

Para encerrar, uma confissão: desde que cheguei a essa conclusão, muito tempo atrás, não tive coragem de arriscar uma cambalhota. Nenhuma, nem mesmo como tentativa de recuperar a juventude. Acho que nem sei mais como é o movimento, o que fazer com as mãos, em que momento dobrar a cabeça. Se resolvesse tentar, é bem capaz que eu acabasse me machucando.

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6 comentários sobre “O envelhecimento em seus primórdios

  1. Salve, salve Diego.
    Meu chapa, muito interessante, pois este texto me pegou numa época não tão ímpar, já que se repete todos os anos, mas numa fase na qual fico a pensar na velhice. Falta, exatamente, uma semana para mais uma das minhas primaveras e agora, após ler o texto, fiquei a pensar, pensar e pensar: quando dei minha última cambalhota? No dia 18/07 não só comemorarei como cambalhota-ei como criança. Talvez, para, por um instante, esquecer-me que, no fundo, envelheci mais um pouco ou para relembrar os tempos em que após assistir algum filme dos Trapalhões na Sessão da Tarde saía saltidando, saltitando com uma, duas, três piruetas: BRAVO! BRAVO!

    Forte abraço

    Bruno Alvaro

    Ps. Voltamos a vencer. Sábado, espero, mais três pontinhos!

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  2. repito que já pronunciei: você é tremendo ensaista, filosofo com pé no chão, lucido acima do que muitos achariam normal, anseio diariamente pelo seu post e nunca me decepciono.
    Do envelhecimento entendo já que ultrapassei os 84, e o que aborrece mesmo é o enfraquecimento do corpo, pra mim um real desapontamento, esportista ao extremo hoje me contento com a piscina, femures de aço inox me salvaram da cadeira de rodas, perdi 5 kilos de massa muscular, mas ainda sou rijo, mas minha memte abençoada seja, brilha sem intermitência, e com ela dou minha cambalhotas culturais, e não peço licença pra dar saltos mortais e cair de pé sobre meus poemas, contos e novelas, vivo contente e a morte não me assusta existencialista que sou, sou uma cara feliz, tive uma vida de prazer e aventura mesmo obrigaado a cuidar do bem estar dos meus e como vc diz: “Quando temos menos fôlego para o sexo, temos mais habilidade para dar prazer” é bom demais se quer saber, e abraçe seu pai por mim que de velho não deve ter nada

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  3. Emmanuel disse:

    Engraçado, nunca fui uma criança de dar cambalhotas. As poucas que dei foram forçadas pelos amigos, talvez por alguma professora do jardim de infância… Mas o fato é que nunca dei cambalhotas por prazer ou por vontade própria. Minha mãe dizia que eu era uma criança velha. No entanto, nunca fui uma criança triste ou infeliz; na verdade, posso dizer que não conheci o que era tristeza, tirando uma chateação ou outra, que não é tristeza de verdade, até os doze anos, quando alguma coisa se partiu, não sei bem o quê. Mas até lá eu era uma criança confiante e amada, protegida do mundo, e feliz, imersa num mundo imaginário nos fundos de um apartamento. Parabéns pelo texto!

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  4. Não sei ao certo se estou certo, mas vejo em tudo isso o real tempo nos mostrando.. dizendo e fazendo.. envelhecendo, mesmo que nem percebendo.

    Amanhã isso se dará com mais ênfase.

    Abçs e,

    Venha ler AMANHÃ, dia 12, um texto em comemoração a data.. lá no AveSSo.

    Visite e Comente… http://oavessodavida.blogspot.com/

    O AveSSo dA ViDa – um blog onde os relatos são fictícios e, por vezes, bem reais…

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  5. Olá mon ami,

    Gosto muito daquele verso do Pessoa, em que ele diz que nós somos “cadáveres adiados que procriam”.

    O fato é que envelhecer é algo que me impressiona muito… Talvez por isso trabalhe com o que trabalhe…

    Abraço,

    Lelec

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