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Memórias do solstício

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Em tempos de mundo cibernético, não tem maior tortura que passar uns dias fora do ar, sem saber quando volta o servidor, se alguma informação vai ser perdida, se algum leitor pensará que o blog acabou de vez. Um horror. Nesta última semana, cansei de digitar o endereço de meu blog, e meu blog não era encontrado. Dizia-me o navegador, veja a ousadia, que a página não existe. Sei muito bem que ela existe, sim senhor.

Agora estamos de volta à ativa, espero que de vez; se perdi algo, foi a oportunidade de publicar um qualquer coisa sobre o último sábado, 21 de junho, ainda no calor dos eventos. Não há nada como traduzir, ou tentar traduzir, um clima presente, a sensação das coisas enquanto elas acontecem, o frescor das impressões e dos olhares. Mas, como essa possibilidade está excluída, resta buscar na memória o que ficou gravado do dia mais longo do ano.

No fundo, é até melhor; a memória é uma víbora, transforma todas as percepções em fantasias, imagens, relatos que nossa consciência constrói para si mesma, em geral nada fiéis aos fatos, se é que eles existem, os fatos. A memória, sempre perdida entre nossas idéias e nossos desejos, está a um passo da loucura, de forma que a sanidade nada mais é do que um acordo bastante instável entre as quimeras de pessoas que convivem estreitamente.

A digressão do parágrafo anterior parece não fazer sentido, mas faz. O último sábado, 21 de junho, foi o solstício de verão do hemisfério norte, noite de São João, em que a claridade é imperatriz e obriga a celebrar a fertilidade. No norte da Europa, o marrom-e-cinza do inverno já ficou definitivamente para trás, substituído pelo verde e o azul mais intensos, como se não fosse o mesmo continente.

É quando os nórdicos gigantes, os sisudos prussianos, os ingleses fleugmáticos e os enfezados parisienses resolvem colocar tudo de pernas para o ar. É como um carnaval, com toda espécie de fantasia, idéia, loucura e desejo. Mas como só dura uma noite, e uma noite bem clara, a turma não consegue se controlar. Ao longo do ano, cruzamos toda essa gente no metrô e nas calçadas, macambúzia, sorumbática, francamente hostil. De repente, no bendito solstício, eis que aparecem abraçados, saltitantes, cheios de bebida no bucho, soltando gritos selvagens e entoando canções de bar. Impossível não simpatizar com eles.

Cada país, claro, tem sua própria maneira de celebrar o mais longo dos dias (não estou me referindo ao Dia D). Os suecos fabricam coroas de flores e dançam em torno de uma enorme estaca verde que, espero eu, simboliza algo muito positivo. É o que se faz, pelo menos, no campo. Os urbanos preferem entornar aquavit, despir-se em praça pública e bater o carro. Não é à toa que peças como Senhorita Júlia e filmes como Sorrisos de uma Noite de Verão se passem justamente nesse dia em que jamais escurece. Por sinal, Bergman só filmava no estio.

Os ingleses, ah, eles e suas particularidades. Não consigo pensar em nada de específico que aconteça em Londres, mas essa é a data em que se realiza, há trezentos anos, a corrida de cavalos mais britânica que há. Nesse dia, o resfolegar dos cavalos é ofuscado pelas distintas senhoras de sangue azul, que concorrem para decidir quem usa o chapéu mais esdrúxulo e, se possível, cafona. A discrição é terminantemente proibida. Quanto à plebe, ou seja, o resto de nós, ninguém descreveu melhor a insanidade coletiva do solstício do que Shakespeare em Sonho de uma Noite de Verão. A idéia de que pessoas sejam transformadas em jegue do pescoço para cima, na verdade, não é tão fantasiosa.

Cá na França, nunca podemos esquecer o fator determinante que é a Administration Française, ou seja, o governo, que desde o século XIII é a razão de ser deste país. Em algum momento dos últimos séculos, os planejadores republicanos, ou mesmo os da monarquia, consideraram que orgias públicas não contribuem para a manutenção da ordem, ou que não são de bom tom, ou que configuram uma ameaça à estabilidade do Estado. Seja lá o que consideraram, saíram-se com uma alternativa para as festanças desordenadas: a Fête de la Musique.

Está longe de ser má idéia. Quem quiser pode, com toda tranqüilidade, escolher uma programação comedida para esse dia em que as cidades são tomadas por toda sorte de apresentação musical. O austero não precisa se esconder debaixo dos lençóis, pode procurar um recital de piano romântico, um concerto de orquestras barrocas, em salas climatizadas e confortáveis. Excelente oportunidade para escutar as belas harmonias que a humanidade já produziu, sem gastar demais.

Mas não é o que escolhe a maioria, claro. Na Fête de la Musique, músicos de todos os níveis tiram os instrumentos do estojo, sentam no meio-fio e tocam. Rodas se formam a cada esquina. As horas vão passando, mais e mais pessoas saem de suas casas, garrafas de vinho na mão. Amigos abraçados, adolescentes fantasiadas, cantores de ocasião libertos do dever de manter silêncio. Os mendigos e malucos que passam o ano deitados sobre os bancos das praças se reconciliam com a sociedade. É que cada cidadão se tornou um pouco mendigo e um pouco maluco.

Quando, lá pelas nove, o dia finalmente começa a fenecer, já é impossível caminhar pelos bairros centrais de Paris. Nem mesmo a música se ouve mais, distante, sufocada pelos berros aleatórios de uma multidão bem mais interessada em festejar a distância das neves. A harmonia já ficou para trás, já não se distinguem mais os violonistas com ar de Bob Dylan, os flautistas metidos a Manu Chao, os DJs que dançam com movimentos rápidos das mãos. Há apenas olhos esbugalhados, risos escancarados, cabeleiras emaranhadas, um amontoado de gente alegre sem motivo aparente.

Fica claro que, como tantas vezes acontece, os planejadores da Administration Française atiraram no que viram e acertaram no que não viram. A estratégia de acalmar as festividades do solstício, se é que existiu mesmo e não é coisa da minha cabeça, falhou vergonhosamente. Mas criou-se algo diferente, um evento que não se resume a bebedeira e violência, mesmo que tenha ambas em dose generosa. As cidades se mobilizam, as melodias se ouvem, acordamos com o programa na mão, traçando a rota do dia. Conseguindo escapar da insanidade no centro, há muito o que aproveitar.

De agora em diante, o vetor é outro. Começou o verão oficial, mas a contagem é cruel. Os dias sempre serão mais curtos do que o anterior. Aproveitando os dois meses de sol que lhes são reservados, os europeus promoverão em julho e agosto uma enorme migração interna que deixará as cidades vazias. Todos estarão nas praias do Mediterrâneo, na África, no Pacífico, alguns até no Brasil. Num certo sentido, é uma maneira de se recuperar da ressaca do solstício.

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15 comentários sobre “Memórias do solstício

  1. Olá, finalmente consigo visitar seu blog e retribuir sua visita. Gostei do seu estilo, me diverti imaginando como é a idéia do outro que visita nosso blog e de repente descobre que este simplesmente sumiu. Os costumes e hábitos que nos abraçam são interessantes.
    Quer dizer que está na França? Legal, estive em Paris recentemente, mas já estou de volta em casa. Por aqui o calor chegou com polpa e circunstância (viva) mas eu prefiro mesmo o friozinho que só voltará no final do ano, se voltar. Do jeito que anda a temperatura do mundo. Vai saber.
    Abraços meus…

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  2. rnas memórias de solstício, como nos mistérios eulesianos, o de retorno de demérter, embora na primavera, querido amigo, somos mais essa possibilidade, ainda que quase sempre seqüestrada, da festa dos sentidos, na colheita comum da alegria potencial dos coletivismos singulares, em que a insularidade indivitual resvala no continente de existir com.
    meu abraço,
    luis

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  3. com sempre você com sua extraordinária verve poetica me levou ao passado da minha infância, sim, o SOL é o verdadeiro deus da humanidade, na Europa do Norte e do Leste a festa é uma exacerbada manifestação pagã, em Londres o Hyde Park (mesmo nos anos de guerra) uma imensa cama verde de fazer amor e banhar – se no sol e quando ainda antes da gurra em Bucareste a familia aprontava as malas par pegar o Orient Express par iniciar as férias, de Paris a Evian e depois a Juan les Pains, como era bela a vida , pais e filhos só prazer e alegria.

    Abrço ensolarado

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  4. Milton Ribeiro disse:

    Ainda surpreso pelo número de categorias, digo “Que belo texto!”.

    Abraço.

    P.S.- Estava contigo na tortura do servidor… Meu debate era o mesmo teu.

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  5. Oi, ficar fora do ar, depois que nos acostumamos a ficar conectado, a gente não consegue mais sobreviver.
    Será que é mal de economista nao conseguir fazer a Mono?? hahhahaa nao sei, pode ser.
    Gostei do que você falou sobre a memoria, as vezes eu fico a divagar nas minhas memórias procurando algo, mas apenas imaginamos as coisas.
    nao conhecia esse servidor de blog: “pensadorselvagem”.
    Quaisquer coisa migre pro blogger ou wordpress. 🙂
    Gostei do seu blogue.

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  6. Vim agradecer a visita no meu blog e parabenizar-te.
    Lindíssimo o seu, e as suas palavras são vertentes poéticas que soam com grande satisfação.
    Adorei.

    Beijos

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  7. Muita chuva no Brasil, no entanto celebramos as festas pagãs da colheita do milho. Aqui chamadas de festas juninas, herança ibérica. Fiquei feliz com tua visita e receba meus cumprimentos pela elegancia de teu texto, que me fez viajar pela Europa e seus costumes.
    Abraço fraterno.

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  8. Interessante é este mundo em que estás, mundo dual, dos opostos, talvez o porque do surgimento das tragédias, da expansão e da contração, do celebrar a vida e a morte. Perséfone está agora com a mãe; mas os dias, a partir de agora, cada vez menores, já anunciam seu retorno aos braços sombrios de Hades, e que por sua vez, anunciam, ainda mais à frente, seu futuro retorno ao mundo, em sua dança leve de fertilidade. O ciclo.
    Por aqui, na outra metade, não percebemos esses contrastes. Este friozinho que faz não altera o ritmo padrão. Quem sabe um São João ou outro nos avise que algo diferente está a acontecer.
    Aqui é como um prato de sopa. Percebe-se as diferentes partes, mas é como se tudo fosse uma coisa só.
    Belo texto, como sempre.
    Abraços.

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  9. Humm, suas reflexões sobre os enganos da memória e a veracidade (ou existência) dos fatos me fez lembrar (ops) de uma condição muito interessante da memória humana.
    A amnésia é apenas uma das disfunções da memória, que pode também se revelar patológica em outras condições: a distorção mnésica e a produção de falsas lembranças. Ainda não se sabe exatamente porque isso acontece, mas é interessante observar que pacientes com doença de Alzheimer (que têm amnésia), produzem mais “falsas lembranças” que sujeitos normais. Ou seja, a memória desses pacientes é atingida em dois aspectos (aparentemente) diametralmente opostos. Uma colega minha defendeu um doutorado sobre o assunto.
    Bem, me desculpe a digressão, mas freqüentemente fico pensando em delírios neurocientíficos quando leio seus textos. Preciso anotar suas sugestões de leitura em Fenomenologia e parar de te importunar (e seus leitores) com minhas divagações…

    Abração,

    Lelec

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