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Vista assim do alto (1913-2008)

Mangueira seu cenário é uma beleza
De madrugada, o diálogo que ninguém escutou.
– Me levar? Como assim, me levar? Não vai me levar coisa nenhuma.
– Desculpe, Seu Bispo, temos que ir.
Seu Bispo não quis saber. Fechou a cara e cruzou os braços. Turrão daquele jeito, ninguém poderia obrigá-lo a fazer o que não quisesse. Aliás, todo mundo sempre soube disso.
Só que dever é dever.
– Vamos, Seu Bispo, está na hora.
– Você me respeite. Eu sou pai de família. Tenho noventa e cinco anos e não sou obrigado a ouvir desaforo!
E Seu Bispo enterrou o queixo no peito, franziu o cenho, afundou os ombros no travesseiro verde-claro que as enfermeiras vinham trocar a cada manhã.
Quietos ficaram, imóveis, os interlocutores. O impasse era um triunfo para o velho orgulhoso, mesmo na doença, mesmo preso ao leito da clínica. As carnes negras do rosto, mais que cansadas, lhe caíam pelas bochechas. Por baixo, ele tentava disfarçar um sorriso. Mais uma vez, seu famoso mau humor haveria de prevalecer.
De pé, paciente como são os de sua estirpe, o belo anjo negro se contentava em ser o último a encarar os lábios que sorriam. Aquela magnífica boca que, durante tantas décadas, preenchera o ar dos salões onde casais dançavam de rostos colados, e depois fora animar as multidões na avenida, a voz encorpada pairando acima dos três mil tambores.
Pois a voz soou de repente, imperativa e irresistível:
– E vai me levar pra onde?
Um pouco intimidado, apesar de imortal, o anjo só respondeu apontando para o alto.
– Pro céu? Mas não vou.
– Seu Bispo…
– Que papo é esse? Obrigado se vocês lá em cima pensam que eu sou uma boa pessoa, mas não vou. Fico por aqui mesmo.
– Olha, infelizmente não é possível…
– Aqui, que não é possível! Uma hora, estou com uns probleminhas no rim, na bacia, derrame, coisa e tal. Na outra, já vem neguinho querendo me levar pro céu. Vê se pode…
Tudo isso, José Clementino dizia ainda com os braços cruzados, a papada negra esparramada sobre a camisa branca, a cara amarrada.
– Não, não.
O anjo adocicou ainda mais a voz. Aquele não era qualquer mortal, era alguém que, chegando ao céu, receberia no mesmo instante um lugar de destaque entre santos e orixás.
Nada de ferir seus sentimentos.
– Desculpe, Seu Bispo, eu não posso esperar mais…
– Quer parar de me chamar assim? Ninguém nunca me chama assim!
– … Seu Jamelão, estão esperando o senhor para puxar uns sambinhas em homenagem a seu Angenor e seu Natal.
A explicação teve efeito contrário ao desejado pelo anjo. Uma falha inaceitável, para um ser eterno e que sabe de tudo. Jamelão quase rolou para fora do leito. Explodiu, abriu os braços, berrou com uma força difícil de conceber em um homem tão velho e tão fragilizado.
– Quantas vezes vou ter que falar? Eu não sou puxador de samba! Puxador é maconheiro ou ladrão de carro!
Desorientado, o anjo tentou contemporizar. Levou as mãos aos ombros do cantor e o empurrou de volta para o travesseiro, com toda sua delicadeza de anjo.
– É que, lá em cima, está todo mundo com saudades do senhor. Cartola, Paulo da Portela, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, todo mundo quer ouvir a sua voz. Estão preparando uma roda lá em cima, com vista para a Mangueira e o Rio. O senhor sabe, Seu Jamelão, a cidade, vista assim do alto, mais parece um céu no chão…
O cantor já parecia mais calmo. Talvez fosse o esforço que o cansasse, ou a lembrança dos amigos.
– E os daqui, seu Jamelão, ainda vão poder escutar os seus discos.
Jamelão fechou os olhos. Sua respiração era um fio, a expressão no rosto era tranqüila, nada parecida com a cara de poucos amigos quase tão célebre quanto a voz enorme.
– Vem comigo, dá a mão, vem…
Ao amanhecer deste sábado, o Brasil soube que Jamelão não era mais.

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19 comentários sobre “Vista assim do alto (1913-2008)

  1. Beatrice Portinari disse:

    Jamelão, você está em boa companhia cercando de outros anjos e contando as últimas para Cartola, Paulo da Portela, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Jacob do Bandolim etc. Seu Bispo, daqui onde me encontro sorrimos pela sua felicidade e lamentamos não estar entre vocês “jogando conversa fora” e compartilhando uma boa roda de samba.

    Adeus Jamelão!

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  2. Jo disse:

    Para o q é muito mais q memória:

    “Já vivi muito, estou no lucro. Quero é que o mundo acabe em melado para eu morrer doce” Jamelão.

    grata pela visita, muito bom o blog.

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  3. bacaníssimo! Acho que Jamelão gostaria da maneira como vc noticiou a sua partida!

    (adorei tb suas digressões sobre a morte. Mente fértil hein? Consolador saber que há mais gente com essa capacidade imaginativa! As vezes over-pensar me dá vertingens.rs)

    volto com calma pra reler os outros post´s. Gostei daki.

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  4. Adorei seu texto, emocionante!
    Nessas horas tenho uma profunda alegria de ser brasileira! A arte de Jamelão está eternizada…

    Homenagem merecida! E a Saudade que acompanha!!!

    bjs

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  5. Amigo Diego,
    Obrigado pela visita e ainda ter gostado de um dos meus textos. Espero que vc retorne novamente,ok?

    Teu blog é excelente!! Bela homenagem ao mestre Jamelão.
    Gostei tbm do texto sobre Simonal, que independente de qualquer acusação política, porém, o legado artístico de Wilson Simonal vem ganhando cada vez mais reconhecimento pela na história da MPB, onde é considerado um dos melhores cantores.

    Voltarei mais vezes aqui.
    Abraços e uma boa semana.

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  6. Olá Diego! É isso, o seu texto diz e diz muito sobre a partida do Jamelão, sem dúvidas, um dos maiores interpretes brasileiros, estamos orfãos mais uma vez, assim, como ficamos com a partida de: Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Cartola, Lupércinio , Jacob do Bandolim…

    Olhe a foto que lhe deu saudades é do Dique do Tororó, a Lagôa do Abaeté está pedindo socorro…

    abraços
    O Sibarita

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  7. Somente uma pessoa que ama verdadeiramente a música brasileira escreveria algo tão rico, carinhoso e emocionante. Sou carioca, o impacto vai além dos bares da zona sul e morros e favelas. É Brasil dolorido e de ressaca. Um pedaço (pedação) da nossa história se foi mas o lindo disso tudo, graças a Deus, é que tudo que é bom é eterno. Como nossa cultura, nossa música, o samba… e escritores sensíveis como o autor do blog este.
    Emocionou-me às lágrimas. Anjos digam amém!
    Abraço apertado 🙂

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  8. Oi, Diego:
    Bom receber sua visita .
    Fiquei um longo tempo no blog antigo, me deliciando com seus textos, já que tinha um tempo que não ia por lá.
    Depois vim conhecer o blog novo encontro esta deliciosa homenagem ao mestre Jamelão.

    Já tá nos feeds , seu novo blog.
    Abs

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