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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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17 comentários sobre “O que dizem as rosas

  1. Denise Andrade disse:

    oi Diego,que bela imagem essa do clipe que você postou, Beth Carvalho cantando “As rosas não falam” ilminou meu dia.Obrigada,um boo dia!

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  2. Ricardo C. disse:

    Diego, muito bacana, para não variar!E me fez lembrar de um antigo texto do D.T. Suzuki comparando Oriente e Ocidente por meio de poesias, e de poesias que falam de flores… Pus ele aqui faz algum tempo, e creio que dá para fazer uma ponte com o teu texto.Abraços

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  3. YEHUDA disse:

    Diego, grato pelo comentário, enfim alguém quem “entende” Bukowski, muitos o leram, tava na moda, poucos entenderam o significado do seu escracho,da sua ironia, cinismo e honestidade.Bom, voltando ao que interessa,sua crônica é excelente e o mais importante ao meu ver e relembrar o grande poeta popular, o Cartola, As Rosas Não Falam sem nenhuma duvida é o mais autentico poema surgido da alma de um brasileiro

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  4. Ricardo C. disse:

    Caramba, Yehuda, logo agora que separei os meus velhos Bukowski para deixar num sebo qualquer?(Não, Diego, não virei neocon e tb passo longe de ser um “velho con” — com trocadilho francês e tudo…)

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  5. Diego, gostei imensamente dos dois últimos textos. Encantei-me com as rosas e identifiquei-me com a sua política geral de sensatez. Parabéns!
    Sinto falta de te ler no Breviário, pura falta de tempo. =/

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  6. Diego, brilhante post, como sempre!!! Adoro ler o que você escreve, não perco um, embora nem sempre tenha tempo pra vir comentar ;- )

    Parabéns.

    Bjs
    Nat

    p.s.: Ah, tome uma em meu nome tb hehehe

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  7. Olá moço!

    texto interessante, rosas, Bergson, Cartola…

    rs

    Bom, tem um outro moço q tb toma das flores algo muito instigante:

    Será que a rosa visual: objeto-flor, me
    facilita o acesso à experiência humana?
    Nesta dimensão a rosa é pictográfica,
    hieroglífica, tribal. Minha mãe mostrou-me
    na roseira uma rosa oral-audível e, mesmo
    oracional, afetiva-emocional, quase prece.
    Hoje caem pétalas no meu olvido.
    (Altino Caixeta de Castro)

    Ah, gostei da visita.

    :*

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  8. Lindíssimo texto..

    Envolvente, melancólico, filosófico, cheio de vida e tão misterioso…em roubou do chão.
    Qual não foi a surepresa quando escrevi hoje um texto sobre o outro lado do Rio e postei Cartola, claro.
    As flores roubaram o perfume do mestre, tenho certeza.
    E viva o Flu!

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  9. è não dá para ser sempre verdadeiro, e acho que tirando o fato de ficarmos surpresos com esta “verdade”, não há porque querer ser sempre verdadeiro… isso é impossivel!
    A vida é um circo!!! O que vale é ser feliz 😛
    Lindo o clipe!!!!
    A música!!!
    A lembrança de Cartola (e quem disse que ele morreuo!?!) e,por fim, linda a maneira deliciosamente gostosa de escrever que você tem, faz a gente ficar aqui lendo, lendo, lendo… até esquecer do tempo 🙂

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  10. Olá, Diego.

    “Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais.”.

    Do caralho! Muito bom mesmo!

    E quanto ao “simplesmente” do Cartola, concordo com gênero, número e grau. E não tinha visto pela perspectiva de que senão fosse o Cartola e o tom trivial, prosaico, realmente pareceria um cantada clichê. Excelente observação.

    Quanto ao taco de golf do meu conto, pensei em uma tranca de carro, mas peruas endinheiradas não têm carros velhos, nos quais precisam de trancas de ferro. Então, só sobrou pro taco de golf mesmo.

    Abraços!

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  11. A gente se perde entre suposições que brotam e verdades inventadas. O mundo é um moinho, vai que ela cheirou cheirando mesmo, sentindo que a rosa não roubou dela a fragãncia e jogou fora a coitada? Mas estou supondo.

    PS: Delirium Tremens está devidamente anotada. Por sinal, como será beber Delirium Tremens ouvindo Delirium Tremens?

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