direita, eleições, esquerda, frança, francês, história, imprensa, ironia, opinião, paris, Politica, reflexão, sarkozy

A política mané e o pauvre con


Chega de Brasil por um instante. Cá na terra das rãs fritas também acontecem coisas que merecem comentário e reflexão. E não há personagem melhor para isso, neste momento, do que o impagável, o magnífico, fonte inesgotável de causos e fofocas, objeto das maiores apreensões republicanas, o único, o famosíssimo presidente da França, Nicolas Sarkozy. A última do húngaro que não curte estrangeiros, se tivesse acontecido há um ano, durante a campanha presidencial, enterraria de uma hora para a outra sua candidatura, e os franceses teriam hoje, provavelmente, sua primeira mulher na presidência.

A gafe foi gravada no vídeo que encabeça este texto. Eis a história: a maior feira de agricultura do país, no principal complexo de exposições parisiense. O presidente faz um de seus discursos cheios de promessas (em que olha fixamente para o chão, jamais para o público ou as câmeras). Findo o palavrório vazio, é hora de se mandar o mais rápido possível. Mas a multidão está espremida. Os gorilas de terno e óculos de sol não conseguem abrir caminho. Acaba sendo necessário cumprimentar alguns expositores e visitantes. A imagem é de chorar de rir: Sarko tem a cara daqueles atores de filme americano, quando representam políticos que tentam e tentam, mas não conseguem esconder o desprezo e o asco pelo populacho. Detalhe: Sarkozy não é ator, é o próprio político. Precisa voltar a seu curso de interpretação (pode se matricular na mesma turma do José Serra, que tem mostrado uma certa evolução).

Tudo vai bem, mas eis, porém, que, de repente, um bravo fazendeiro se recusa a estender a mão ao presidente: “Não encosta n’eu! Tu vai me sujar!” (reproduzo a linguagem um tanto particular do sujeito. E aponto para o fato de que usar o “tu”, sobretudo com o presidente, é de uma agressividade sem par.) Sarkozy, sustentando o arremedo de sorriso implantado no rosto, responde no mesmo tom (porque, afinal, às vezes é difícil se lembrar do cargo que a gente ocupa): “Te manda, então! Te manda!” E, virando as costas ao cidadão, emenda, com expressão zombeteira: “pauvre con!” (Con é um palavrão impossível de traduzir. A rigor, denomina uma parte da anatomia feminina. Na prática, serve de epíteto negativo a toda espécie de coisas: pessoas, situações, idéias, objetos. É quase uma vírgula. Ah, sim, pauvre é pobre.)

Mas o mais surpreendente do caso não é que Sarko tenha xingado o sujeito, embora seja de se esperar de um presidente que não entre em rusgas menores com cidadãos do país que governa. Afinal, políticos são humanos, cheios de vícios, como qualquer um de nós. Churchill bebia como um bode; Juscelino tinha um gosto muito apurado pelo belo sexo; Itamar Franco, por sua vez, o tinha não tão apurado, como todos se lembram. Acontece que Sarkozy é um líder da era das mil mídias, da informação sem fronteiras, das câmeras em cada canto. Qualquer coisa que ele diga em voz alta será captado pelos microfones com toda certeza; em menos de 24 horas, estará espalhado pelo mundo. E o ponto crucial é o que segue: ao contrário de nosso folclórico ex-presidente de Juiz de Fora, o infame chefe de Estado francês tem plena consciência do que seja a mídia em nossos tempos. Sarko vem explorando o poder da imprensa tanto quanto pode. Fala o que acha que agradará aos medíocres dentre os medíocres. Expõe ao máximo sua vida pessoal, de maneira, às vezes, para lá de vulgar. Tenta passar uma imagem de “igual a vocês”, alguém que não tem as mesmas raízes dos rivais, quais sejam, os políticos tradicionais, vetustos, anacrônicos. Um sopro de novidade. Deu certo até a eleição; depois, a estratégia começou a fazer água. Mas é um fenômeno que merece a nossa atenção.

A novidade que Sarkozy representa é menos política e mais midiática do que poderíamos supor. É universal e não está necessariamente ligada às correntes tradicionais da política. Nosso francês, em particular, cresceu na carreira e elegeu-se presidente pelo partido mais tradicional da Direita (UMP). Mas poderia ser diferente, como talvez seja o caso brasileiro (mas isso é discutível). Sarkozy é um representante do que podemos, sem concessão e com uma linguagem adequada, embora talvez indigna de análises mais rigorosas e acadêmicas, denominar “política mané”. Por que “mané”? Porque não é o mesmo fenômeno do “demagogo” ático ou do “populista” latino-americano. É algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.

Examinemos, para efeito comparativo, os grandes líderes da Direita anteriores a Nicolas Sarkozy: o já referido Winston Churchill, o grande (aliás, enorme) general Charles de Gaulle, o alemão Konrad Adenauer, chefe da reconstrução do lado Ocidental no pós-guerra. Esses eram homens que incorporavam o espírito do país como um todo; que pacificavam os conflitos internos de suas nações graças tão somente à força de sua legitimidade; mas essa legitimidade, emanando ou não das urnas, era um corolário inquebrantável da liderança que suas meras figuras exerciam. E como era possível que fosse assim? Seria alguma espécie de carisma? Não, o conceito não basta. Esses homens eram políticos na acepção weberiana do termo: nasceram para a coisa. Estão ali de corpo e alma, completamente imersos na estreita ligação que existe entre um povo, seu Estado e sua liderança. E isso, num tempo em que o aparato de comunicação dos governos era muito inferior.

Há uma passagem do filme sobre François Mitterrand, Le promeneur du Champ de Mars, em que o derradeiro presidente de Esquerda da França diz, com todas as letras, que será o último grande estadista a ocupar o cargo. Depois dele, afirma, com a implantação da Europa (leia-se União Européia), viriam apenas meros gerentes. Pois ele acertou quase na mosca. Gerente é uma categoria empresarial, mas dificilmente tem lugar nos embates políticos. Quem vai querer dar seu voto para um gerente, aquele cara pacato, de colete de crochê, óculos grossos e calva lustrosa, sem graça como picolé de chuchu light (TM José Simão)? Ademais, se não se apresentam aqueles estadistas que encarnavam em si a nação inteira, quem haverá de se apresentar, senão alguém que encarne, em compensação, as fantasias do eleitorado? Alguém que, como o eleitor comum, teve uma educação não tão boa; tem idéias não tão complexas; fala não tão difícil; revela uma queda pelos bons carros e iates; exibe um relógio suíço e elogia os blockbusters de Hollywood; não perderia a oportunidade de tirar uma casquinha da ex-modelo italiana; e, finalmente, também acha aqueles árabes sujos uns árabes sujos. Resultado: dentro de um modelo social em que o mané tem a voz preponderante, nada mais natural do que o surgimento de grandes líderes da nova “política mané”. O processo está provavelmente se repetindo no mundo inteiro. Sarkozy e Berlusconi são apenas a ponta do iceberg.

Epílogo: mencionei no texto que “talvez” seja o caso do Brasil. Já ouço as vozes sedentas, implorando para que eu afirme logo: Lula é nosso representante-mór da “política mané”. Devagar com o andor. Todos estamos irritados com o governo, mas nem por isso vou comprometer a seriedade da análise. É arriscado dizer de Lula que ele seja uma espécie de Sarkozy tupiniquim, mesmo resguardadas as diferenças ideológicas (e todas as outras). Gafes à parte, e à parte, também, o patente despreparo administrativo do velho Luiz Inácio para o cargo que conquistou duas vezes, Lula tem atrás de si, ao menos, uma biografia. Isso talvez ainda o prenda ao universo da “política política” e o afaste da “política mané”. Sarkozy, ao contrário, se fez apenas graças a intrigas palacianas e uma técnica refinadíssima de lamber as botas mais indicadas. E agora, nesses tempos de triunfo da “política mané”, que curioso: as botas a lamber são as suas próprias.

PS:
Mané não deixa de ser uma das muitas traduções possíveis para con

Padrão

12 comentários sobre “A política mané e o pauvre con

  1. Anonymous disse:

    Muuuuito bom texto e excelente análise… Deveria publicá-la em francês, foi a melhor análise feita até agora sobre a última connerie do nosso presidente Francês…Abraços !

    Curtir

  2. Ricardo C. disse:

    “Babaca” é um pouco mais forte que “mané”, e tem em comum com “con” o fato de dizer respeito (com desrespeito) à vulva…Ótimo texto, e ótimo périplo com o seu amigo Lelec, por ocasião do texto dele sobre Fidel e a imprensa brasileira.Abs

    Curtir

  3. Rafa Punk disse:

    Camarada Diego,Gostaria de escrever sobre esses seus últimos posts – sem dúvida muito interessantes – de forma a estabelecer um diálogo mais frutífero com você. Porém, trabalho e estudo não vêm me permitindo esses luxos. Gostaria apenas de emitir dois rápidos comentários:Primeiramente, em relação aos seus posts sobre a Veja: o jornalismo brasileiro deixa, sem dúvida, muito a desejar. Porém, não vejo bases muito melhores no exterior, nem a credibilidade da qual você falou (basta ver o poder de Murdochs, Sarkozys e Berlusconis sobre a mídia escrita, p. ex., que descredibiliza-as completamente).Em segundo lugar: a democracia, tal como nos é imposta hoje, sob os auspícios do capitalismo mais alienante, só pode gerar esse tipo de líder mesmo. E, nesse caso, é forçoso admitir que Sarkozy representa o francês médio, e Lula o brasileiro médio – ainda que não existam na vida real, tais tipos médios.Abraços,Rafa-PUNK

    Curtir

  4. Lelec disse:

    Olá Diego, mon ami,Essa do Sarkô foi mesmo hilária! O que mais me fez rir não foi exatamente a frase, mas a cara de político chinfrim com que ele vai agradecendo a multidão até chegar no “pauvre con”. Sensacional!Assim como é sensacional também o seu texto. Você atingiu em cheio o cerne da questão ao evocar a declaração de Miterrand: estamos em uma época de gerentes, não de estadistas.Bem, uma vez mais nossos blogs se tangenciam. Eu também escrevi sobre o Sarkô no meu último post e, como gostei muito deste seu texto, coloquei um link para você. Dê uma olhada.Abração,Lelec

    Curtir

  5. fran disse:

    realmente o Sarkzoy ultrapassou todos os limites. faz tempo que ele se transformou o anti-exemplo de presidente francês. uma atitude mais questionável atrás da outra. eu estou achando que quem se deu bem foi a ex. lamentável. e ainda provou não ter o mínimo de respeito pelos idosos. vai ver o velhinho era gagá ou realmente não o suporta. e vc acertou a mão: a cara dele de ator ruim – candidato forte a vencedor da framboesa de ouro – realmente me fez embrulhar o estômago.

    Curtir

  6. Elton Pinheiro disse:

    Texto realmente excelente. …essa parte (aobre a política mané) para mim vai além….:”algo novo, típico de nosso século de Big Brother e Dança do Créu.”Parabéns, devia mesmo publicar em francês.[ ]s

    Curtir

  7. Nelson (Pô, meu!) disse:

    Diego,O “seu” presidente é um figuraço. Tem certeza que ele não é um personagem não? Dá de vinte no César Maia, o alcaide do Rio.Ótimo.Abraços e sucesso,

    Curtir

  8. osrevni disse:

    Mas Ricardo, babaca é um pouco corriqueiro demais… Mané demonstra um desprezo mais elegante, digamos assim.Rafa, a mídia internacional está piorando muito, realmente. Mas não dá pra comparar com a falta de profissionalismo dos nossos veículos…Leo, valeu pela lembrança. Seu post tá sensacional, como eu disse lá no Terceira Margem.Nelson, acho o Sarko mil vezes pior que o Cesar Maia. Nosso prefeito é um cara esperto, bem mais esperto que o maligno francês…

    Curtir

  9. Pingback: Veja, a indignação e o jornalismo mané | Para Ler Sem Olhar

  10. Pingback: Abra o olho, Sarkô! – A Terceira Margem do Sena

  11. Pingback: Veja, a indignação e o jornalismo mané | Para ler sem olhar

Deixe um comentário