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Panela de pressão apitando em desespero

Guerre
A Europa carrega nas costas o peso dos crimes da História; senão todos, pelo menos quase. Isto pode ser verificado em todas as catedrais e castelos, bulevares e cafés. A beleza das árvores no outono pode emocionar, mas sussurra constantemente no ouvido a memória do colonialismo, do fascismo e da Inquisição. O Louvre, além da Vênus e da Gioconda, ainda tem nas paredes, mesmo fenecidas, as manchas de sangue da noite de São Bartolomeu. O Duomo de Florença é no fundo um compêndio da ganância dos Medici, assim como a Praça de São Pedro reflete a história para lá de profana do papado. E o museu do Prado, para não esquecer a Península Ibérica, acima de todas as suas telas de Velásquez e El Greco tem penduradas as vítimas hereges e judaicas, como os espectros que rondam o Tiergarten de Berlim.

Mesmo os crimes cometidos na África, na América e na Ásia são reflexo da crueldade dos europeus, esses seres pálidos de terras frias e escuras, que venderam, geração após geração, suas almas em troca de ouro e glória. Os crimes dos americanos no México, no Caribe, na Coréia, no Vietnã, no Iraque, também ecoam, ainda hoje, a sede de sangue dos conquistadores europeus. É a ação do chamado Ocidente (um conceito obscuro capaz de incluir todos os habitantes de países ricos que não têm pele escura ou olho puxado).

Toda essa sanha destrutiva custou caro ao continente. Eles chegaram à beira do abismo mais de uma vez, a última delas há pouco mais de meio século. Perderam grande parte de sua riqueza, suas colônias, sua predominância internacional. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Áustria, Portugal. Todos eles, países que chegaram a se considerar donos de um belo naco do mundo – ou de todo ele. Centros de cultura, comércio e poder. Todos submetidos ao jugo de sua ex-colônia norte-americana e, por algum tempo, a seu antigo patinho feio, a Rússia.

* * *

O que restou do banho de sangue foi um continente fascinante, pelo que tem de cruel e pelo que tem de admirável. Ao contrário do que disse o Otto Lara Resende (ou será que foi o Nelson Rodrigues, se fazendo passar pelo Otto? Isso acontecia…), não é uma burrice aparelhada de museus, mas o museu vivo das burrices e dos brilhantismos que nem sempre se distinguem claramente. É o continente que inventou o humanismo com as ferramentas do Terror e da retórica esnobe. Foi a primeira parte do planeta a romper aristocraticamente com a aristocracia, a disseminar tiranicamente os valores democráticos, a abrir a sociedade às mulheres, sem abrir mão do patriarcalismo. Neste rabicho da Eurásia surgiu a idéia de que todo indivíduo tem direito à educação: os ricos e os pobres, os brancos e os imigrantes; educados, os trabalhadores puderam render melhor nos momentos da espoliação. A Europa investiu mais do que ninguém em transporte de massa, que leva seus subjugados para subúrbios desumanos como os nossos – bom, talvez não como os nossos.

A amplitude das contradições chega a ser fantástica. Se for para comparar com o Brasil, eu diria que nossas contradições são mais comportadas, reproduzindo na ponta dominada uma imagem de tamanha incompatibilidade. Note-se a civilidade, e quão brutal essa civilidade pode ser: quando há um problema, e Deus sabe que há muitos, eles sentam, discutem e resolvem como der. Nem que isso envolva ameaças de aniquilação e fantasmas de guerras passadas. A cultura européia, com toda sua arrogância e xenofobia, e talvez até mesmo por causa dela, é mais aberta do que a nossa. Como pode? Apesar de uma infinidade de atitudes de segregação e desrespeito que se vêem quotidianamente nas ruas de Paris, ainda assim os franceses se dedicam a iniciativas de aproximação com outras culturas, religiões, civilizações, bem mais que os brasileiros.

No Brasil, quando se discute qualquer assunto, a comparação é inevitável: “no Brasil é X, na Europa (ou nos EUA), é Y”. Já o europeu discute assim: “Aqui X, no Egito é Y, em Madagascar, Z, no Japão W, no México…”. O mais notável é que na verdade eles estudam geografia mais ou menos como nós, mas não acham que seja perda de tempo. É um exercício pelo qual reafirmam para si próprios, e para os periféricos deste mundo, sua superioridade moral (já que a econômica e a bélica, não dá mais). Assim, absorvem aquilo que é útil para eles e elevam à categoria de descrição fiel do universo. É autoritário e, ao mesmo tempo, aberto.

Mesmo assim, parece que o momento atual está fazendo transbordar isso tudo. Devo dizer que estou assustado, sem querer soar sensacionalista. Há um ódio latente que é difícil não notar, e que tem justificado um desejo de retornar a narrativas bem mais fechadas (e tão autoritárias quanto). Aqui há olhares de desprezo, acolá de agressividade. De um lado há sobrenomes tradicionais da Provença ou de Champagne, do outro filhos do Maghreb e da Costa do Marfim. Houve por algum tempo uma ilusão de integração e assimilação que exala uma certa beleza. Por sinal, chegou a ser verdade alguns casos. Por exemplo, durante um curso da faculdade, estudantes de origem islâmica debatem com o professor no tom mais aberto e intelectualmente honesto possível.

Fora da sala de aula, isso não acontece dessa maneira. Os grupos islâmicos estão se tornando mais herméticos e muito se fala em ressentimento. Há famílias que recusam a entrada de médicos e bombeiros em seus enclaves, sentindo-os como se fossem imposição de um império colonial. Não admitem estudantes não-islâmicos em suas escolas, e chegam a expulsar famílias que colocam seus filhos em escolas públicas, e portanto laicas. Afastam-se de todo contato com o país em torno. A descrição é desagradável, mas o mais desagradável é perceber que por muito tempo não acontecia assim… e agora está acontecendo.

* * *

A explicação pode estar no lado inverso, e é por isso que ele me assusta mais. É mais ou menos normal que populações imigrantes procurem buscar segurança no próprio seio (claro, com um certo bom senso), principalmente quando são grupos excluídos socialmente e economicamente desfavorecidos. O que observo, porém, é um recrudescimento do ódio nos europeus, esses mesmos que há algumas gerações desenvolveram os conceitos de tolerância, humanismo, igualdade e assim por diante, pincelados acima. As comunidades muçulmanas se fecham sobre si próprias e os próprios europeus se fecham também, não só para os muçulmanos, mas para os próprios conceitos que formam o, digamos assim, lado mais admirável dessas contradições européias. Andam ressuscitando ideais de pureza e violência que se acreditavam sepultados e superados. A presença de um “outro”, na verdade um semi-outro, já que sua história é intimamente vinculada à história dos europeus nos últimos séculos, justifica a a firmação de uma identidade que também é mutilada e grosseira. Nada de bom pode sair daí.

Vê-se a tensão em cada canto, como uma panela de pressão que apita em desespero. Muçulmanas com véus tão apertados quanto possam, coloridos, de frente para moçoilas de mini-saia e maquiagem, que as encaram com ar de desdém. Rapazes de barba e pele escura olhando como quem quer briga para colegas pálidos que se barbeiam provavelmente duas vezes por dia, e não retornam o olhar de maneira menos agressiva. As posturas estão cada vez mais demarcadas, distantes, herméticas. Os cursos universitários de cultura islâmica têm pouquíssimos interessados, a grande maioria de estudantes muçulmanos, quase nenhum não-islâmicom querendo se aprofundar em outras formas de pensar e enxergar o mundo. Quando o provável próximo presidente chama uma parcela da população de escória, não é à toa. Não há diálogo, senão marginalmente, entre pessoas “de boa vontade” mas um pouco sonhadoras.

Não há como deixar de ver um certo risco de uma guerra civil, quiçá religiosa, na Europa. Nada, claro, como o que se passa no Brasil. Não é questão de ser assaltado na frente de um policial que finge nada ver. É algo um pouco mais, digamos, sério. Seria a concretização do “choque de civilizações” de Samuel Huntington? Talvez, mas o que se choca são, na verdade, vizinhos que têm o mesmo passaporte, votam nos mesmos candidatos, usam a mesma linha de metrô.

Os valores que salvaram o continente, infelizmente, não são tão fortes quanto chegaram a se afirmar (e não poderiam se firmar sem afirmar-se como tais, talvez até mesmo sabendo que era blefe). Não será de estranhar se esses antigos monumentos forem testemunhas de mais um banho de sangue. Talvez o que falte a esses valores seja nutrir-se da própria dialética e entender o quanto há de contraditório neles. Afinal, se havia o ideal de uma integração, que integração é essa que necessariamente apaga quem vem a se integrar? Se de fato a imigração enriquece a cultura que a recebe, qual é o nome que se dá a um enriquecimento que relega a subúrbios esquecidos a fonte dessa mesma riqueza?

Há uma falha trágica, pelo visto, na própria integração, e que vem completar as falhas dramáticas do integrismo dos brancos e do comunitarismo dos árabes. Muito de criação poderia passar no meio desses buracos, desses vórtices supersaturados de energia. Mas caminhando pela cidade e por alguns de seus subúrbios, conversando com jovens e velhos, franceses “de souche” e filhos de magrebinos, o termo que flutua por entre as frases, quando o interlocutor faz a pausa para retomar a respiração, é ressentimento, como o apito da panela de pressão.

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17 comentários sobre “Panela de pressão apitando em desespero

  1. Anonymous disse:

    Meu, Deus… que texto bem articulado… faz pensar… Bom, tomara que o tempo possa afrouxar essas relações e que uma guerra civil ou religiosa não aconteça. Gostei de ter voltado. Nunca me arrependo de passar por aqui.Abraços!

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  2. Anonymous disse:

    Olá Paulo, acho que enquanto os europeus estavam se abrindo os muçulmanos estão cada vez mais fechados e fazendo grandes alardes por qualquer coisa o que provoca medo naqueles que os aceitavam. Não sei como eles não percebem que estão piorando a discriminação dos não-islâmicos em relação a eles… Acho que eles mesmos estão plantando a semente para essa guerra. Não concordam com nossos custumes e tentam sempre impôr o deles… Não tenho nada contra eles ou pessoas de qualquer religião ou cor, mas acho que devemos ter respeito mútuo entre todos, não é mesmo?! Tb estou com medo dessa guerra, mas esperando que ela não venha =)Beijinhos e obrigada pela visita ao Caravela!!! Vou te adicionar lá!

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  3. Maitê disse:

    Olá Paulo!Valeu pela visita. POis é, o maior genocídio da história foi promovido pelos europeus, na América. Dizimaram maias, incas e astecas. Um horror…Abs

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  4. Márcia(clarinha) disse:

    A cada dia o pavio fica mais curto e carga de pólvora bem maior e rezar não adianta mais, tudo começou muito lá atrás, há tanto tempo que se perdeu o foco, o rumo, as estribeiras…Culpas? Muitas! mas nem elas amenizam as dores do homem, tomara esse sangue coagule e o banho não se realize.Obrigada pela visita, gostei do seu espaço e nem parece que não sabe lidar com html[eu também não sei,rssss]ótimo domingobeijossssssssssssss

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  5. cilene disse:

    Nossa que texto com embasamento. Vejo isso também..mas vou mais longe: vejo a reação do europeu não só contra o árabe , muçulmano, mas contra quase todos os imigrantes. Acho que estamos próximo de mais uma banho de sangue na civilizada Europa

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  6. A comentarista disse:

    G E N I A L!! Maravilhoso o seu texto! Deveria ser traduzido para todos os idiomas europeus e publicado nos principais jornais dos seus respectivos países. parabéns!

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  7. Alex disse:

    E nós, aqui no Brasil, temos a visão de que a Europa é um paraíso, mas é um lugar, com seus problemas e suas revoltas. Gostaria muito de conhecer a Europa, mas aquela calma, bonita, cultura, sem guerras. É sempre a melhor né? Obrigado pela visita, vou voltar 😉 abração.

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  8. paulo vigu disse:

    É … o mundo anda mesmo meio panela de pressão. Compactuo com sua visão real do clima aí. É um prazer recebê-lo no Rio daqui. Mergulhe mais vezes lá. Eu virei cá. Riodaqui/abraço poético/Paulo Vigu

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  9. CeciLia disse:

    Texto lúcido, meu caro. Não é essa a Paris que eu sonho. Mas, se for assim, ainda vou vender minhas flores nas calçadas. Abraços, obrigada pela visita.

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  10. Cris disse:

    Deus salve a rainha e o povo brasileiro. Aproveitando…Achou que ficou livre das campanhas eleitorais? Santa inocência Batman!Estou participando da escolha do Blog do Trimestre da Blog News então, se gosta do blog, me ajuda lá. Prometo apenas uma campanha por mês 😉 http://www.crisb.zip.net e clique no link.Beijão.

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  11. Dácio Jaegger disse:

    Paulo, de acordo com as idéias no seu texto comecei a pensar no fortalecimento das economias da Espanha, França, Itália, Alemanha, Suíça, Holanda e outros que graças ao trabalho, tenacidade e esperteza, se tornaram fortes tecnologicamente, a tal ponto de terem trabalho braçal à vontade que os nativos destes países não se dão ao luxo de executar o que abriu desde o fim da segunda guerra mundial, centenas de milhares de empregos para portugueses, espanhóis mesmo, turcos, alemães orientais, búlgaros, húngaros e etc, etc. O custo de vida se tornou tão caro que o crescimento demográfico zerou em certos países, que corriam o risco de extinguir-se; nestes a população cresceu à custa dos imigrantes e seus descendentes, que uma vez “nacionais” ainda se mantém com suas filosofias e religiões de origem, fanáticos e fundamentalistas de 700 anos. Os árabes vem de séculos de exploração de suas riquezas sob o peso das botas, troar dos canhões e baioneta calada; ninguém esquece isto; veja que os judeus lembram constantemente do holocausto perpetrado pelos nazistas; aqui em baixo na Bolívia está seu povo dando o troco pela exploração multi-centenária; se lembrarmos do estanho, do cobre, da prata, do ouro, roubados na América do Sul e transformados em riqueza pelos europeus e atualmente, americanos, teremos que tratá-los com carinho. Seu post incita muitos metros de considerações; voltarei. Obrigado pela visita e um forte abraço.

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  12. Guilherme Roesler disse:

    Paulo, muito obrigado pela sua visita e pelo seu comentário. Do mesmo modo, tambem gostei muito de seu blog “cor-de-burro”. Vive realmente em Paris? se sim, meus parabens. Tomo um cafá por mim e aproveite. Tem um novo post la no CG em que entrevistei o escritor Janer Cristaldo, a respeito da Europa, democracia e literatura. De uma passadiinha lá. Ira gostar. Abraços, GR

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